Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

Pobres Criaturas, sexualidade e autonomia

Texto publicado originalmente na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir, assine aqui.


Um aspecto que me incomoda nessa discussão é o uso equivocado do conceito de olhar de masculino. Sexo e nudez de uma mulher em um filme dirigido por homem não significa necessariamente que seja um olhar masculino: o termo cunhado por Laura Mulvey se refere a um conjunto específico de práticas de poder por meio da imagem e, sinceramente, tem sido usado de forma banalizada e pouco embasada. A noção não deve ser essencializada: existe homem filmando sem olhar masculino; existe mulher filmando com olhar masculino. O que deveria ser claro é que a política do olhar da composição de um olhar masculino busca a criação de uma imagem-objeto para o prazer visual de quem olha. A mulher, despida de agência, é feita imagem como o receptáculo passivo do desejo alheio. Uma lógica bem distante daquela apresentada por Bella, que não é uma personagem que se mostra para o prazer de quem olha. Bella provoca o estranhamento e busca tudo o que o mundo tem a oferecer para si. O câmera, ainda por cima, reforça o estranhamento na fotografia que distorce o que é visto.

A própria Emma Stone menciona que esses comentários ignoram sua agência no projeto. “Tem havido muitas perguntas sobre: ‘Oh, este era um escritor e um diretor homens, o olhar masculino nesta situação – como é isso?’ Acho que isso tira minha agência aqui, porque sou a produtora [do filme]. Esta é a história que queríamos contar da maneira como queríamos contá-la. E então me parece que seria um pouco estranho se eu [como produtora] tivesse me tirado disso [como atriz, com a agência sobre o papel], porque eu estava atuando nele [o filme], como se eu não fosse uma voz importante ali também ou estivessem me falando o que fazer”. Ela acrescenta que “[O sexo] é obviamente uma grande parte de sua experiência [de Bella] e de seu crescimento, como é, eu acho, para a maioria das pessoas na vida. Então, para a câmera se afastar disso, ou dizer, ‘Ok, bem, vamos cortar tudo isso porque nossa sociedade funciona de uma maneira particular’, parece uma falta de honestidade sobre quem Bella é”. Nas palavras da atriz, seu papel como personagem principal, como produtora, como atuante no feitio do filme implicam agência sua na própria composição de Bella. E ser agente é o contrário de ser objeto.

E é justamente isso que não entendo nesses comentários sobre o filme: nos entendermos como criaturas não só generificadas como sexuais faz parte do processo de crescimento como pessoas humanas. Ter certas expressões de gênero e sexualidade cerceadas e controladas também faz parte daquilo que é entendido como viver em sociedade. Passamos por isso tudo, inclusive, para sermos consideradas pessoas “bem educadas”. Especialmente quando se trata de uma experiência feminina, esses limites são muito tênues: não é de bom tom ser nem muito frígida nem muito ardente aos olhos das demais pessoas. Existe o comportamento que nós desejamos ter, o que é esperado, e o meio-termo muitas vezes negociado. Na minha opinião, o filme trabalha bem a noção de descoberta do próprio corpo e de que maneira usufruir dele nem sempre é algo que será aceito. A autodescoberta não é uma jornada linear e nem sem seus percalços. A ficção permite vislumbrar diversas possibilidades desse processo.

(No final das contas, toda essa conversa é uma argumentação que se apega apenas ao sexo como temática no filme e ignora toda a exploração e a experimentação intelectuais pela qual a personagem principal se embrenha, descobrindo em livros e no contato com outras pessoas sua própria autonomia, bem como outras descobertas corpóreas, como a própria dança, libertadora).

Ainda sobre as críticas, me incomoda que não se faça distinção entre representação de sexualidade e pornografia, como se a mera insinuação ou presença de sexo, em uma visão patentemente moralista, fosse pornográfica por si só. Ou como se, por ser uma personagem mulher, fosse vetado pensar em sua sexualidade como um tema da obra. O que é pornografia? Eu jogo no google o termo e ele me define como “obscenidade, indecência, licenciosidade”. Sexo é sempre obsceno? Obsceno é um conceito negativo? Se posto nesses termos, não há espaço para a nuance, para o erótico. Não há espaço para a experimentação, para a provocação. Não há espaço para a imagem respirar e buscar a sensorialidade de quem assiste.

(Além de que pornografia é inerentemente “ruim”? Todo mundo sabe que a indústria de cinema pornográfico tem diversos problemas, mas quando se pensa que toda arte sempre foi, é e será apropriada pelo erótico, podemos elaborar que o gozo não é o problema: o problema é o sistema capitalista que o explora. Barbara Hammer, por exemplo, fez inúmeros filmes maravilhoso, pornográficos e feministas. Mas isso é assunto para outra hora). 

Por fim, a acusação de que o filme faria uma apologia à pedofilia é simplesmente risível: vem de um olhar incapaz de compreender um dispositivo fantástico na narrativa, entendendo-o e decifrando-o dentro de uma literalidade que obviamente não cabe em proposta como essa. (Não, A Forma da Água não é uma ode à zoofilia, pelamordedeus).

Quando falo que defendo as cenas de sexo no cinema é claro que é uma provocação. É óbvio que existem dinâmicas de poder no set, objetificação, assédio e outras questões que aparecem dentro e fora das telas. As dinâmicas de gênero e sexualidade no cinema são complexas e isso é inegável. Mas não joguemos o bebê fora com a água do banho. Isso não é dizer que obrigatoriamente toda obra que nasce do encontro de pessoas com gêneros diferentes necessariamente vai resultar nessas situações. Pensando justamente em dinâmicas de poder, é por isso que autoralidades queer e feministas se destacam tanto na criação de imagens de sexualidade interessantes, ousadas e bonitas. Mas isso também é possível em outros contextos, claro.

No final das contas, toda essa discussão sobre Pobres Criaturas e sobre o comportamento e as ações de Bella Baxter parece vir do desconforto que a descoberta do corpo parece gerar. Parece ser sobre uma incapacidade de conceber que uma mulher (mesmo ficcional) deseje. Se a trama tem sexo, esse sexo é percebido como forçado (ou na frente ou atrás das câmaras) e ela necessariamente é objetificada. Não há espaço para a possibilidade de agência, autonomia e mesmo expressão criativa (diegéticas ou extra-campo). Mulher não pode querer. Liberdade e gozo feminino incomodam, ainda.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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