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[49ª Mostra de São Paulo] A Garota Canhota

Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


Shih-Ching Tsou é parceira de longa data de Sean Baker, atuando como produtora e atriz em seus filmes e como dupla na direção de Take Out em 2004. A Garota Canhota (Left-Handed Girl) é sua estreia no comando solo de longas, mas a influência de Baker é gritante em seu trabalho, não apenas porque o recente vencedor de cinco prêmios no Oscar também produz, monta e divide o roteiro com a diretora do filme, mas pela estética geral. A direção de fotografia um tanto rústica, com luzes estouradas e saturação elevada, unida à montagem agitada de Baker, faz com que a obra lembre Tangerine e outras parcerias anteriores, e é claro que a pequena menina aprontando por aí tem toda a cara do Projeto Flórida fazendo uma franquia em Taipei.

A história acompanha Shu-Fen (Janel Tsai), uma mãe solo que se muda novamente para a capital de Taiwan com as duas filhas e precisa dar seus pulos para garantir o sustento da casa. O pequeno apartamento com cômodos estreitos já puxa a energia da cidade pulsante, junto de uma câmera que se aproxima muito dos rostos. Esse é um lugar em que é preciso se espremer para passar. Assim como o mercado de rua noturno em que a família de três mulheres vende macarrão se torna cenário para I-Jing (Nina Yeh) viver um pouco da sua infância. Ao mesmo tempo, I-Ann (Ma Shih-yuan), a filha mais velha, tenta ganhar a vida paralelamente em um negócio duvidoso em que o chefe é também seu amante.

A Garota Canhota acompanha a rotina dessas mulheres sem que exista necessariamente um conflito central, mas sendo constantemente agitado, sem muitos respiro entre os dias e acontecimentos. É como se a intenção fosse uma imersão de quem assiste nessa vida caótica de trabalho, dívidas, familiares complicados e filhas que precisam crescer quase sozinhas nesse espaço que sobra entre tantas ocupações. I-Jing é o grande carisma do filme, querida por todos no mercado e com os cuidados divididos entre a mãe e a irmã. Os avós, com negócios ilegais correndo em casa, demonstram uma questão cultural em que os filhos homens são mais úteis e desejados pelas famílias, deixando as meninas para a responsabilidade dos maridos. Shu-Fen se torna problemática para todos quando é abandonada e se torna chefe do lar, precisando carregar tudo sozinha e contando com pouca ajuda, ou nenhuma, das irmãs e da mãe.

Quando o avô de I-Jing implica com o fato da menina ser canhota, coloca em sua pequena cabeça que usar a mão esquerda é usar a mão do diabo. Assim, em meio a tantos obstáculos que as três enfrentam, principalmente financeiramente, a garota passa a cometer pequenos furtos em lojas com esse membro supostamente maligno, como se isso criasse uma passe livre para coisas ruins. Esses alívios cômicos são constantes, mesmo quando uma tragédia acontece e I-Jing passa a ter medo da mão esquerda, Shih-Ching Tsou faz piada do momento. 

A história é universal, a mãe solo que tenta de tudo para sustentar e criar as filhas, a mais velha que se torna um tanto mãe também da irmã, para ajudar em casa. Mas as características muito próprias da estrutura familiar taiwanesa são opressivas e constantes. Se não fosse o abandono do marido, a vida de Shu-Fen seria mais fácil? Sua família a apoiaria mais se ela fosse um homem? Seu cansaço e esforço seriam valorizados se seu gênero fosse diferente? Fica claro que sim. E, nesses pontos, é forte como a cineasta consegue captar individualmente a essência de suas personagens principais, como mulheres e como garotas amadurecendo nessa realidade.

É inegável que A Garota Canhota é uma fusão de Shih-Ching Tsou com a visão de Sean Baker, difícil dizer se a diretora só construiu sua maneira de fazer cinema com suas experiências com ele, ou se ela ainda terá oportunidade de encontrar a própria voz, mais independente. O que fica fácil notar é que, embora seja uma estreia na direção solo, a cineasta já tem longa bagagem no cinema. A fotografia estourada, emulando um certo amadorismo, não engana, as intenções são bem desenhadas e esse está longe de ser um filme de iniciante. 


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha.

Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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