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[49ª Mostra de São Paulo] A Natureza das Coisas Invisíveis

Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


É tempo de férias escolares para Glória (Laura Brandão). Cheia de imaginação e um tanto solitária, a menina de 10 anos acaba presa ao hospital em que a mãe (Larissa Mauro) trabalha por longas horas como enfermeira. Seus amigos são os pacientes do local, todos muito mais velhos, e seus brinquedos são objetos deixados pelos falecidos, em caixas etiquetadas. Quando a bisa de Sofia (Serena) é internada, as duas meninas criam uma conexão e o espaço fechado ao redor delas se torna um parquinho. A configuração familiar de ambas é toda estruturada nas mulheres e, sem focar em problemas ou obstáculos em primeiro plano, Rafaela Camelo une as duas famílias de forma que uma de força à outra e partilhe suas perspectivas.

A Natureza das Coisas Invisíveis coloca suas lentes bem próximas das crianças, construindo o espaço hospitalar a partir desses olhos imaginativos. Ainda que Glória e Sofia aproveitem como podem o tempo livre, os corredores e quartos são claustrofóbicos. Estar em um hospital constantemente é uma lembrança diária da morte, relação muito mais presente para a filha da enfermeira, de forma prática, e que passa a ser sentida pela nova amiga de maneira mais espiritual. O filme pode ser dividido pelos espaços que trabalha. Na primeira parte, enclausurado no ambiente médico, ainda que nunca perca a leveza, e na segunda parte torna-se livre na ida ao sítio da bisavó (Aline Marta).

Sempre acompanhando essa visão inocente, até os temas mais pesados são aliviados. Camelo, que dirige e escreve o filme, trabalha temas importantes e complexos de maneira natural, da mesma forma como Glória, uma criança, compreende questões tidas como difíceis para sua idade. Da morte em geral até como Bento deixou de existir para Sofia nascer, a menina assimila tudo na sua noção pura e afetiva do mundo. Do outro lado, as adultas se apoiam nesse momento como duas mães que não possuem rede de apoio na cidade, e constroem isso juntas. A chegada ao sítio revela ainda mais mulheres, parentes da mãe de Sofia (Camila Márdila) que apresentam para as visitas suas crenças e curas.

Nesse lugar em que a natureza cerca todas, e tudo ocorre de forma tão natural, Sofia explica para a amiga que seu registro foi feito errado, com outro gênero, a bisavó ensina sobre suas orações e as almas que vê e as mulheres da casa dão bênçãos e remédios naturais para curar as cicatrizes de Glória. A morte, que no hospital era rotina sem explicação, se torna um processo espiritual que entra devagarinho na existência dessas mulheres e meninas, para ser aceita em paz como todas as outras coisas da vida.

Camelo lida com doçura e muita naturalidade com seus temas, permitindo que suas personagens interajam e conversem como se fossem grandes amigas apenas passando um tempo juntas e descobrindo coisas novas. É um cinema que foge de ser didático ou de construir um grande drama ao redor daquilo que considera fundamental. O fascínio estampado em tela, traduzido dos olhos das crianças que comandam essa narrativa, é suficientemente grandioso para a importância da identidade, maternidade, finitude e tudo mais que se elabora no longa. 

Extraindo ainda algo muito próprio do Brasil, a relação com uma fé mais artesanal, longe de grandes igrejas ou regras, e que sempre foi guiada pelas mulheres e passada de uma a outra, A Natureza das Coisas Invisíveis condensa em seu título exatamente tudo que é. Uma obra que enxerga a beleza do que não se pode ver, que mostra a natureza das pessoas e de suas almas e que, com uma direção incrível de pequenas atrizes iniciantes, pega emprestada a imaginação e a sinceridade de uma idade tão cheia de possibilidades. Mais importa a esse longa essa liberdade e abertura, do que explorar dores, preconceitos ou barreiras. Não é que as problemáticas sejam ignoradas, mas elas são trabalhadas com leveza, dando foco a tudo que há de mais inspirador ao redor.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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