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[49ª Mostra de São Paulo] Assassinato Sob Custódia (1989)

e texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


África do Sul, 1976. As sequências de abertura do filme já demonstram total controle da composição de imagem para fins discursivos. Dois meninos, Johan (Rowen Elmes) e Jonathan (Bekhithemba Mpofu), um deles branco e outro negro, nomes semelhantes, roupas parecidas, idade próxima, jogam futebol, como se nesse momento estivessem alheios ao contexto político do país e mesmo à hierarquia de classe que se estabelece entre seus pais, o primeiro patrão do segundo. (Depois iremos descobrir que apenas um deles de fato está alheio).

Depois disso, temos um dos protagonistas, pai de Johan, Ben, interpretado por Donald Sutherland, um homem branco de olhos azuis, loiro com têmporas grisalhas, segurando um bebê rechonchudo, igualmente branco, ambos vestindo roupas leves e claras. Eles estão rolando por um gramado verdejante em frente a uma grande casa sob o olhar acompanhado de sorrisos de sua família, ladeado de um grande cachorro amarelo. A luz é cálida e tudo parece idílico.

Por outro lado, um grupo de crianças e adolescentes se manifestam contra o apartheid e são brutalizadas pela força policial. Gordon (Winston Ntshona), o jardineiro, chega com seu filho Jonathan cambaleante, as nádegas do menino em carne viva com açoites. Ben ajuda o funcionário mas questiona o que o garoto fez. “Deve ter um motivo”. Afinal, se a polícia, que mantém a ordem, espancou uma criança, esta deve ter provocado de alguma forma. É ali que Gordon sabe que existe uma barreira entre eles. Ainda há os que justifiquem a violência.

O contraste entre as imagens do jardim veranil de Ben, mantido pela mão-de-obra de Gordon, e a brutalidade vivida fora daqueles muros, ignorada por ele, mostram a maestria da direção da cineasta martinicana Euzhan Palcy, que constrói essa contraposição como que com escárnio pela situação. Ela, que é homenageada nessa edição da Mostra de São Paulo com um Prêmio Humanidade, se tornou, com Assassinato Sob Custódia (A Dry White Season, 1989) a primeira mulher negra a realizar um filme em um grande estúdio em Hollywood.

Nesse sentido, é interessante a estratégia de utilizar a imagem de um ator como Donald Sutherland no papel principal, um astro hollywoodiano que, sem dúvida, aplaca os ânimos dos executivos e ajuda a tornar o filme vendável nos mercados. Porque Ben, no final das contas, não é exatamente um herói. Ele não é um salvador branco. Em certo momento ele abre um sorriso para relatar ao seu interlocutor, um homem negro, que é nascido e criado na África do Sul, um africano como outro qualquer, ao que o outro, gentilmente responde “cuidado, querido”, diante de sua incapacidade, nascido, criado, adulto, com filhos, neto, de enxergar diante de seus olhos que sua África do Sul não é a mesma dos outros. É um nível de pensamento tão simplório que ele só pode ter chegado onde chegou sustentado por um sistema projetado para privilegiá-lo.

Em compensação, os personagens principais sul-africanos negros são, esses sim, interpretados por atores sul-africanos. Além de Winston Ntshona, há Thoko Ntshinga como Emily, esposa de Gordon e mãe de Jonathan; e Zakes Mokae como Stanley, da resistência-anti-apartheid. É como se Palcy afirmasse que essa é uma história da África do Sul e precisava de pessoas de lá para encená-la. O que impressiona é que uma obra com um posicionamento tão contundente e uma mensagem tão direta tenha sido realizada ainda durante a vigência do regime. Para que ele pudesse ser filmado, a produção foi realizada no Zimbábue (sob forte vigilância do governo sul-africano, diga-se de passagem).

Quando Jonathan participa de outra manifestação estudantil, acontece um verdadeiro massacre, com mais de 50 mortos e 700 feridos. Genocídios, sabe-se (até hoje) também miram crianças. Gordon trabalha cabisbaixo e aflito, enquanto Ben e Johan brincam no jardim aos fundo, captados pelas lentes de Palcy em profundidade de campo, alheios ao seu sofrimento. A imagem de um país dividido, em que as duas realidades dividem o mesmo plano. A partir do desaparecimento e posterior confirmação do assassinato sob custódia do Estado (que confere o título em português) Gordon e Emily partem em busca de recuperar o corpo do filho, que ninguém parece saber onde está.

O filme não se furta de mostrar os labirintos burocráticos, mas também a máquina de moer gente que é um governo autoritário. O sistema baseado em supremacia racial se valia da Guerra Fria como ferramenta ideológica: todo inimigo é rotulado de comunista e assim é facilmente esmagado. Pessoas são torturadas, desaparecidas, suicidadas diante dos olhos daqueles que primeiro fingem desconhecer o que eles fazem, depois questionam as motivações e por fim desejam o retorno a uma suposta normalidade. Susan (Janet Suzman), esposa de Ben, chega a dizer “nós criamos esse país, veja o caos que está o restante da África”, ignorando completamente os violentos processos coloniais que sobrepujaram fronteiras de nações anteriores já existentes.

Há o momento drama de tribunal, para escancarar que não há justiça em uma situação como essa; e o momento filme de espionagem, mostrando desdobramentos da resistência. O que fica é que nada é individual e mesmo o esforço coletivo pode ser infrutífero a curto prazo sob um governo capaz de qualquer terror para manter suas estruturas segregacionistas.

A potência narrativa das imagens de Euzhan Palcy é desestabilizadora. E ainda que ela se se valha de uma de uma lógica comercial, busca subvertê-la a seu favor, repensando as estratégias possíveis com os personagens em questão. Palcy precisou usar do jogo para vender um filme que não é o filme que está lá, mas o que chega nas premiações. Infelizmente nem todo mundo percebeu isso. O cartaz, as críticas da época: provavelmente tudo vai indicar os motivos errados para assisti-lo. Chega a ser frustrante. O sentido da imagem precisa ser codificado, os verdadeiros protagonistas alçados a seu lugar. E assim, Assassinato Sob Custódia é um filme dual, mas um que uma vez visto é duro, nunca banal, e impressionante na sua realização e no seu resultado.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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