
[49ª Mostra de São Paulo] Bugonia
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
O cineasta grego Yorgos Lanthimos ficou mais conhecido por suas obras serem desconfortáveis, ou “estranhas” para alguns, e por sua lente olho de peixe sempre distorcendo as cenas. Seus personagens são muitas vezes quase inertes, pessoas que se relacionam com um mundo conturbado ao redor e em algum momento percebem que precisam romper a redoma, enfrentar aquilo que lhes foi imposto. Não é uma regra em 100% de seus filmes, mas o estranhamento certamente é sua linguagem, seja na fotografia, na história que criou ou por como cada ator e atriz representa seu papel.
Em Bugonia, Teddy (Jesse Plemons) é um homem que dedica sua vida a provar que as teorias de conspiração em que acredita estão corretas. Após a mãe ser afetada drasticamente pelos malefícios de uma grande e gananciosa corporação, ele caça aqueles que identifica como andromedanos, com ajuda de seu inocente primo Don (Aidan Delbis). É aí que, com muito estudo e pesquisa, os dois vão atrás da poderosa CEO Michelle Fuller (Emma Stone) e, se até esse ponto já dava para notar o grande senso de humor do longa, o encontro dos três se torna o pontapé inicial de uma sucessão de trapalhadas e absurdos.
Lanthimos tensiona dois lados, a loucura dos primos paranoicos contra a maldade capitalista da grande empresária e seus interesses que destroem o mundo. Por muito tempo essa batalha é travada dentro da casa isolada de Teddy, mais especificamente no porão, o subsolo facilmente associado a homens com raro contato com outras mulheres e com rancor suficiente pela sociedade para acreditarem em discursos fabricados que vão do formato do planeta Terra até a origem nada humana de grandes líderes. São nesses conceitos já muito bem formados na mente da pessoa espectadora que o diretor aposta, bem como o roteirista Will Tracy.
A partir do sequestro de Michelle, Bugonia estica sua piada por quase toda a duração. Não é difícil rir do lunático que acha que uma poderosa empresária só pode ser uma alienígena, ao mesmo tempo em que o jeito manipulador da mulher é facilmente atrelado ao seu perfil de girl boss. Essas personalidades cheias de estigmas foram traçadas durante a introdução, de forma bem didática, e são estressadas no conflito que sustenta toda a narrativa, em excelentes atuações de Stone e Plemons. A forma como os personagens deste filme são mais agitados e motivados do que costumeiramente Lanthimos apresenta, abre margem para que os trabalhos dos atores sejam muito melhores que outros longas recentes em que estiveram junto com o cineasta.
Então, se o absurdo já tão conhecido da pessoa espectadora é visto em tela por uma perspectiva tão cômica quanto violenta, Bugonia passa quase toda sua duração provocando quem assiste a rir da crença inabalável do louco, pelo ceticismo que cada um já pode carregar em sua maioria, enquanto faz um pingue-pongue do que é verdade e o que é farsa. Michelle performa, de uma maneira ou de outra, na tentativa de sobreviver ao rapto, por vezes confirmando as teorias de Teddy, e em outras se apoiando naquilo que só pode ser o mais razoável possível, negando tudo. O homem castrado quimicamente, totalmente focado em seu propósito, jamais se abala e, assim, se mostra ingenuamente manipulável desde que seu discurso seja validado.
A princípio, quando Teddy e Don sequestram Michelle, a mulher é apenas uma milionária comum, com roupas caras, pele bem cuidada e cabelos longos. Rapidamente as crenças dos primos a transformam fisicamente. A cabeça é raspada para interromper qualquer possibilidade de comunicação com a nave-mãe, as roupas ficam em frangalhos e um creme hidratante é aplicado em uma camada grossa por todo seu corpo e rosto. É assim que sua aparência vai de uma empresária qualquer a algo que de fato se assemelha a um alienígena, como se Teddy acreditasse tanto naquilo que foi capaz de projetar suas ideias e as tornar realidade. Mas, tanto quanto o homem é firme em sua ideologia, Michelle é em sobreviver e manter a pessoa espectadora longe de dúvidas sobre sua origem.
Lanthimos se afasta das lentes olho de peixe e parte para provocar o desconforto pelos ângulos e enquadramentos. A fotografia de Robbie Ryan também preza pelas cores vibrantes, mas ainda se liga um tanto a Pobres Criaturas, quando traz as memórias dolorosas de Teddy em preto e branco. Talvez a estética como um todo não fuja muito do que o cineasta costuma fazer, mas há mais energia em geral, uma nova forma de olhar para o caos da sociedade, mais ajudando a aumentar o fogo do que discutir outras perspectivas angustiantes sobre o mundo.
Há muito com o que se divertir nessa longa piada, até questionar se os loucos são tão loucos assim ou se em geral a violência da humanidade não tornou-a superável, um mal próximo da extinção. Porém é nesse ponto que o diretor grego volta a se colocar em sua posição em que o ego fica acima de qualquer coisa e a contemplação do desconforto vem ao primeiro plano. Enquanto Bugonia estica sua provocação sem parar de rir tanto da verdade quanto da farsa, parece mais gostoso se jogar no absurdo proposto, do que nas certezas bem delimitadas.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

