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[49ª Mostra de São Paulo] Duas Vezes João Liberada

Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


Uma daquelas pequenas pérolas com as quais esbarramos em festivais, Duas Vezes João Liberada é um filme que desafia noções de representatividade e representação no cinema, nesse caso envolvendo questões de gênero. Dirigido por Paula Tomás Marques e roteirizado por ela em parceria com a atriz June João, que interpreta a personagem principal, o filme funciona como um meta-comentário sobre o próprio fazer cinema, refletindo sobre como contar a história de quem não está presente.

A personagem principal é João, uma atriz escalada para trabalhar em um filme interpretando João Liberada, uma figura histórica trans ficcional que teria sido perseguida pela Santa Inquisição em Portugal no século XVIII. João Liberada utilizou pronomes femininos e viveu sua vida como mulher, mas foi condenada por pederastia e fugiu de ser queimada na fogueira. Por um tempo teve acolhida e sororidade em um convento, onde chegou ao noviciado.

A João do tempo presente está em conflito constante com o diretor do filme dentro do filme. O que está em jogo são quais os discursos possíveis em nosso século. Se na época de Liberada o discurso da religião era punitivo e o da ciência agia no sentido da normalização, a arte do século XXI deve reproduzi-los sem maiores questionamentos, sem se abrir para a possibilidade de novas fabulações? Enquanto o diretor baseia sua criação em documentos da época, com seus vieses específicos, João quer criar uma história em que Liberada possa ter vivido e sentido como pessoa, e não como discurso legal.

A divisão em capítulos ajuda a criar a própria noção de estrutura narrativa com que se brinca. A tessitura do drama é questionada: como narrar a vida de quem já morreu e não pôde falar por si? Permitir ficcionalizar também é permitir criar vida. Liberada é um fantasma que assombra o(s) filme(s) e ainda que não haja uma resposta certa e não se saiba exatamente o que fazer com sua história, o desafio está dado. Um comentário interessante e provocativo é que mesmo a presença de pessoas queer e de mulheres em papeis importantes na equipe de produção não necessariamente solucionam questões como essas, especialmente quando seu campo de ação é limitado por outras figuras de comando. No passado e no presente, narrar é deter o poder.

June João é uma atriz com uma presença magnética em cena. A combinação do texto com sua atuação faz o filme fluir, tratando do tema sério com humor. Recriar esse passado com as lentes do presente requer texturas para além das obviedades (nada de ofélias e donzelas em perigo). Requer visualizar as pessoas que estavam lá e não eram vistas, ou, se eram, eram ignoradas. Requer recontextualizar e buscar novas perspectivas. Duas Vezes João Liberada acerta na leveza para abrir conversas que não se encerram nele.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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