Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

[49ª Mostra de São Paulo] Entre Sonhos e a Esperança

Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


O iraniano Entre Sonhos e a Esperança (Between Dreams and Hope), escrito e dirigido por Farnoosh Samadi, tem como protagonista um jovem rapaz trans, Azad, interpretado por Fereshteh Hosseini, uma atriz cisgênero, embora não sei se, dado o contexto todo, teria como ser diferente. Azad é um estudante universitário e vive na cidade com sua namorada, Nora (Sadaf Asgari). Toda a parte inicial do filme retrata a vida tranquila que eles levam e o relacionamento harmonioso e repleto de carinho que cultivam.

Entre passeios à praia, festas com os amigos e um pedido de casamento surpresa, paira entre o casal o desejo de Azad de prosseguir com seu processo de reafirmação de gênero, que é garantido pelo governo iraniano, mas mediante burocracias complicadas. Enquanto não anda, sua documentação com o gênero errado lhe obriga a usar hijab dentro do hospital e o protocolo lhe exige um exame de virgindade para dar prosseguimento: a ideia que fica é que um corpo masculino não seria penetrado. Da mesma forma, as noções de masculino e feminino são estritamente definidas pela junta hospitalar: para ser homem não pode gostar de arte. Precisa gostar de esporte. Não pode chorar. Mas a pior das exigências é uma autorização assinada por seu pai.

Incentivado por Nora, ambos partem em viagem para sua terra natal. Azad vem de uma aldeia pequena, onde sua mera existência é considerada uma afronta. E desse momento em diante o filme vira um verdadeiro calvário: aquele que tradicionalmente se espera de narrativas queer que privilegiam o sofrimento. O uso do nome morto e do pronome inadequado são a porta de entrada de violências que escalonam em palavras, gestos, ameaças, ações. Nora passa a ser a protagonista da busca pelo companheiro, numa terra de chuva incessante e desolação. Suas lágrimas sentidas se misturam no lamaçal.

Talvez ter um casal tão bonito, tão jovem, tão terno, tenha um papel pedagógico, de angariar empatia por esses personagens, de fazer o público torcer por eles e seu desfecho (não deveria precisar disso mas). E entendo que essa empatia é para lá de necessária, uma vez que de todas as letrinhas de nossa sopa (e essa não é uma competição) talvez a trans seja a que (ainda) seja a mais perseguida ou tenha direitos cerceados. Inclusive essas dinâmicas entre o desejo de liberdade e repressão conservadora parecem ser muito similares em qualquer lugar do mundo, incluindo o Brasil. Mas confesso que assistir a todo esse sofrimento me deixou cansada. O argumento do filme “necessário” não foi suficiente. Entre Sonhos e a Esperança se vale do carisma das duas atrizes principais, mas exagera na dose do drama que elas precisam carregar.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha.

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *