[49ª Mostra de São Paulo] Foi Apenas um Acidente
Esse texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
Antes da sessão do 28 de outubro de Foi Apenas um Acidente (Un Simple Accident), o cineasta iraniano Jafar Panahi, homenageado na Mostra de São com um prêmio Humanidade, fez um discurso contextualizando o feitio do filme, que transcrevo abaixo:
Sou um cineasta social, todos os filmes que faço são sobre a sociedade. Quando me tiram da minha sociedade e me levam para outro lugar e fico sete meses preso, minha sociedade muda, então tudo muda. Para passar os dias ao longo de todos os sete meses, fiquei escutando as conversas, as palavras das pessoas que estavam ali presas, 6 meses, 9 meses, alguns anos na prisão. Finalmente saio da prisão e vejo atrás uma muralha longa. De repente senti que tenho uma câmera em cima dos meus ombros. Fiquei pensando: eu estou fora e meus amigos estão todos dentro. Todo dia que passei na sala da prisão eu senti esse peso mais forte e mais forte sobre meus ombros. Fiquei pensando comigo: eu vou fazer alguma coisa. Bom, a única coisa que sei fazer é ser cineasta. Finalmente eu decidi fazer um filme, que é esse filme. Espero que eu não faça vergonha na frente dos meus amigos que estavam lá.
Pensando em homenagear seus amigos de prisão e debater os temas referentes ao autoritarismo do governo iraniano, Panahi constrói um suspense que flerta com a comédia de erros. Quando o filme começa, com a câmera no para-brisa de um carro, temos a perspectiva de uma família votando de algum lugar durante a noite. O pai, Eghbal (Ebrahim Azizi), dirige, a mãe (Afssaneh Najmabadi), grávida, está no banco ao lado, e a filha (Delmaz Najafi) no banco de trás, com um bichinho de pelúcia, dança enquanto pede para que que os adultos aumentem o volume do som.
O clima é leve, até que o veículo é sacolejado por um obstáculo: atropelaram algo. O pai desce do carro e confirma que, sem querer, mataram um cachorro. Diante da criança entristecida com o acontecido, o pai diz que foi Deus quem colocou o cão ali e ela responde que Deus não tem nada a ver com isso. Ou seja, em um momento em que infligiu dor, mesmo que de forma não intencional, o homem quis justificar utilizando intencionalidade divina, algo prontamente negado até mesmo pela lógica infantil.
Com o carro danificado pelo acidente, e sem nenhuma oficina por perto, já tarde da noite, a família, é ajudada por uma homem numa casa em uma rua próxima. Até então eles são os protagonistas do filme e, como o título indica, as vítimas desse infeliz acidente, cujas dificuldades geradas nos desdobramentos nos coloca diretamente em empatia com sua situação. Até chegar em casa depois dessa série de eventos, é fácil pensar no transtorno de um atropelamento noturno. Não fosse a justificativa paterna, de querer se colocar acima daquela eventualidade, nada causaria estranhamento no comportamento deles. (E de fato, a menina e a mulher nada fazem ou falam de estranho).
Mas no lugar onde foram auxiliados, um homem os observou atentamente e os seguiu até em casa. Vahid (Vahid Mobasseri) anota o endereço e, no outro dia, começa a seguir o pai da família com uma van. E então, no meio da rua, o intercepta, bate nele e o arrasta para dentro do automóvel. Até então não entendemos o que está acontecendo, o que levou esse homem a perseguir o pai de família que até então era nosso protagonista e ponto focal da narrativa.
Vahid o leva para o meio do deserto e abre uma cova para enterrá-lo. Quando já está jogando terra sobre o outro, ele protesta. E começam a troca de explicações. Vahid diz que na noite do acidente ouviu-o andar e percebeu o ranger característico que o identificou com Eghbal, o perna-de-pau, como era chamado o seu guarda e torturador na prisão. O tal guarda tinha duas pernas prostéticas obtidas em uma guerra na Síria, das quais se orgulhava enormemente, e que faziam barulho de borracha rangendo quando ele andava. Os presos, encapuzados, não viam o seu rosto, mas Vahid diz que conseguia reconhecer esse barulho em qualquer lugar. O outro homem negou ser Eghbal, disse ter perdido a perna no ano anterior em um acidente. Vahid hesitou. No início sua fala parece absurda, tresloucada, até paranoica. Mas depois os detalhes começam a fazer sentido e seu cuidado para garantir que não cometa um engano é significativo nesse contexto.
Em dúvida sobre a identidade do homem que sequestrou, Vahid resolveu consultar outras pessoas. A ele se junta Shiva (Mariam Afshari), que está tirando as fotos de casamento de Golrokh (Hadis Pakbaten). Ambas também foram prisioneiras de Eghbal. O noivo de Golrokh, Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr), a acompanha a contragosto e Ali (Majid Panahi) é o último a fechar o grupo. A questão é que nenhum deles nunca viu Eghbal. Como saber se é ele? O que fazer com esse homem amarrado dentro do furgão?
Panahi opta por registrá-los em planos de conjunto, sejam eles médios, americanos ou abertos, dando conta da dimensão coletiva das decisões e medidas que precisam ser tomadas. Existe humor nas sequências absurdas e no escalonamento de eventos. Vahid, com constantes dores nas costas, é como se carregasse o peso do legado daquilo pelo qual todos eles passaram. Mas o que eles precisam decidir, em grupo, é o futuro. O futuro deles mesmos: que vida eles querem levar dali em diante e quais as consequências dos atos com as quais querem lidar? Mas esse também é o futuro do país: que Irã eles estão criando agora que não estão mais presos? E para isso, também, o que fazer com pessoas como Eghbal (se é que é ele no furgão)?
Os monólogos que os personagens declamam argumentando suas posições são apenas maravilhosos. A difícil decisão do peso da vingança e todos os seus complicadores a favor e contra são debatidos com força pelos presentes. O elenco brilha. O humor perde sua importância cedendo espaço para a dramaticidade, incluindo, inclusive, até onde vai essa vingança: a família é afetada?
Em lágrimas, Eghbal argumenta que eles são iguais. Mas não são. E no final essa é a grande questão. Nem todos são iguais. E ser um agente do sistema não pode ser uma desculpa. Nem ter uma família. Mas o ranger da tortura infelizmente ecoa para sempre, e continua voltando. Pode ser real ou pode ser memória.
Panahi é um otimista: acredita na capacidade humana de criar e de reconstruir. Ele crê que conseguimos deixar para trás a dor. Pode ser catártico, pode ser caótico, pode ser um pouco de tudo. É um processo diferente para cada pessoa, imperfeito. Ele propõe rir na tragédia, quebrar o gelo, mas colocar o dedo na ferida e debater o que é preciso. Foi Apenas um Acidente é um exercício intenso de debate e de humanidade, sem nunca perder de perspectiva que são as complexidades que nos fazem humanos.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha


