Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

[47ª Mostra de São Paulo] Palimpsesto (2022)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


É interessante como sem querer (será?) os filmes de uma mesma cabine de imprensa de festival estabelecessem um diálogo. Depois de Conversas Pela Noite, Palimpsesto (Palimsest, 2022), longa ficcional de estreia da cineasta finlandesa (e doutora em Genética Molecular) Hanna Västinsalo, é outra obra que propõe discussões sobre envelhecimento e a complexidade que que é se relacionar com outras pessoas. E o faz de maneira original e interessante, por meio do fantástico.

Na narrativa, acompanhamos Juhani, um senhor idoso quieto que chega de cadeira de rodas em uma espécie de sanatório ou casa de idosos. Sua colega de quarto é Tellu, uma senhora espevitada, sempre com lápis de olho azul aplicado às pálpebras. Ambos têm 80 anos. Ao acordar no segundo dia de internação, Juhani consegue se levantar da cama sem ajuda e se locomover sem usar sua cadeira. O que se revela é que os dois foram escolhidos para participar de um programa de rejuvenescimento, um estudo que consegue voltar o corpo à sua forma de anos antes sem que a memória deles se perca. Um personagem explica: na história da arte, palimpsesto é quando se aplica uma camada de tinta nova sobre a tinta antiga para renovar uma pintura. E a pergunta que fica é: se você ganhasse algumas décadas a mais de vida, com um corpo jovem novamente, o que faria com isso?

É impossível não relacionar esses acontecimentos intra-fílmicos com a noção de memória prostética, elaborada pela pesquisadora Alison Landsberg, que relaciona memória e identidade. Segundo a autora, é aquilo que lembramos (real ou não) que valida nossa experiência. No filme, apesar de mais jovens, os protagonista sabem que viveram eventos que talvez não condizem com sua idade. A vivência acumulada sempre será muito maior do que o tempo aparente.

No caso de Juhani, ele tem os mais de 50 anos de vida ao lado de sua companheira, que faleceu. Tem também o relacionamento difícil com a filha, que piora depois que ela descobre de sua participação nesse experimento. Tellu, por sua vez, não tem mais ninguém em seu círculo familiar: seu filho já morreu e está sozinha no lugar, curiosa a ansiosa por novas interações. Juhani pergunta o que ela estava fazendo em 1969. Enquanto assiste seus seriados de exploração especial, ele sonha com as estrela. Tellu diz que em 1969 não existia acesso a contraceptivos, as mulheres eram facilmente estupradas e não tinham os mesmos direitos. Ele fantasia a possiblidade de viver o passado no futuro, ela sabe que não cabe nesse lugar, mas que outro futuro está de portas abertas.

Västinsalo estreia com um enorme domínio da linguagem. Desde o começo sabe construir, usando da direção de arte, do som, da fotografia e dos enquadramentos, uma narrativa profundamente sensorial. O hospital, com sua luz branca hostil, é o palco para os primeiros contatos de Juhani com as pessoas que o guiam nessa trajetória. Confuso e atordoado, a câmera subjetiva e constantemente fora de foco mostra como reage ao entorno. O estranhamento aparece, ainda, nos plano-detalhes que enquadram os apetrechos médicos. O som também interfere nas percepções, ressaltado na forma como Tellu interage com eles por meio de seu aparelho auditivo ou mesmo dos barulhos de estática emanados por eles, enquanto redescobrem novos movimentos ou exploram textura em rápida mutação na pele.

Para Juhani, reganhar anos de vida é a possibilidade de realizar sonhos que pareciam distantes. Para Tellu, de desfrutar, entre erros e acertos, daquilo que lhe foi tolhido quando jovem. Ele sabe quando parar, porque tem um meta específica. Ela testa a possibilidade radical de recomeçar, de aprender do zero, de tentar tudo de novo, em um momento em que o peso do gênero parece ter se deslocado (embora ainda exista) na forma como afeta potencialmente sua vida.

O envelhecimento pode ser solitário. As relações (pessoais, amorosas, familiares e parentalidade) não são fáceis. As tecnologias genéticas, cada vez mais avançadas, permitem, hoje, uma série de terapias que potencialmente prolongam a vida das pessoas. Na ficção, por sua vez, o filme não busca responder como, quais são os métodos, mas navega pelas possibilidades do para quê? Com uma estética enxuta e inventiva que trabalha totalmente a favor da narrativa, Palimpsesto é uma ficção científica que emociona não só na jornada de volta ao tempo de seus protagonistas, mas nas interações e experimentações que ela proporciona.

Compartilhe
Share

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *