[49ª Mostra de São Paulo] Happy Birthday
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
Feliz Aniversário (Happy Birthday), de Sarah Goher, foi premiado no festival de Tribeca como o melhor filme internacional, melhor roteiro de filme internacional, levou o prêmio Nora Ephron (de melhor roteirista ou diretora mulher) e é o filme egípcio concorrendo a uma vaga de melhor filme internacional no Oscar desse ano. E ele começa com um momento de revelação sobre uma menina. Na abertura do filme, duas meninas acordam cedo e brincam juntas. A primeira impressão é que são irmãs. É o aniversário de uma delas, Nelly (Khadija Ahmed), que explica à outra, Toha (Doha Ramadan) sobre como fazer um desejo ao soprar a vela do bolo de aniversário. As duas voltam para suas camas para fingirem dormir para a hora do despertador tocar. É quando Laila (Nelly Karim) avisa Nelly que, como elas acabaram de se mudar e a casa está toda encaixotada, não têm condições de fazer uma festa de aniversário. Além disso, há o divórcio com o pai da menina. Mas ao ver a decepção da garotinha, ela resolve organizar tudo de forma relâmpago e fazer do mesmo jeito.
O que surpreende nessa dinâmica toda é ver Nelly se arrumar para ir para a escola, enquanto Toha amarra um lenço na cabeça e começa a carregar caixas e limpar vidros: ela é a empregada da casa. O que se sucede é uma relação de classe que escancara a hipocrisia da sociedade egípcia. Ao mesmo tempo é viável uma mulher rica e bem situada manter uma criança em casa sem acesso à escola. Por outro lado, Laila arrasta Toha para todo lado nos preparativos, seja para comprar comidas, bolo ou roupas para a filha. Mas no mundo contemporâneo fora do ambiente doméstico, o vínculo entre as duas precisa ser ocultado, pois já não é vista com bons olhos. Uma vendedora chega a dizer que poderia denunciá-la por manter uma criada que é uma criança.
A inocência de Toha, justificada por sua pouca idade, não a permite compreender a realidade da exploração a que está submetida. O figurino dela, composto por peças de grife desgastadas, é significativo: ver uma criança com um moletom Fendi desbotado e puído é entristecedor. E a velha lógica do “é praticamente da família” transpondo barreiras nacionais: a menina, para constrangimento da patroa, diz que desejaria continuar ali para sempre, como integrante daquele grupo, sem perceber que sua presença, tida pelas outras como necessária, também é incômoda e até vergonhosa. Toha acredita que é amiga de Nelly e que pertence àquele lugar. Ela genuinamente quer colaborar.
Quando chega a hora da aguardada festa, Toha é enviada à casa da sua mãe para que sua presença não incomode os convidados. Até para sair é revistada pelos seguranças do condomínio. O contraste é estabelecido entre a grande casa isolada no lote, com ruas largas, e as ruas cada vez mais estreitas e sem pavimentação, com trânsito caótico, isso onde veículos automotores ainda conseguem passar, e as casas se aglomerando, até chegar no casebre de sua mãe. Toha se ressente dessas diferenças, mas não parece entender que não é culpa de sua família que as coisas são assim. E ainda assim há solidariedade, cuidado, carinho e pores do sol que se derramam. Quando tenta voltar, a fotografia faz um uso de luzes coloridas como de sonhos, numa visão ainda infantil do mundo.
Doha Ramadan consegue transmitir uma tristeza sem tamanho e ao mesmo tempo muito encantamento. É uma atriz nata, lidando com um tema espinhoso. A exploração do trabalho infantil se vale da miséria e da necessidade e se aproveita de inocência. Ao utilizar uma criança protagonista é fácil cair em narrativas apelativas, mas a jornada de Toha é envolvente sem precisar de soluções óbvias. Feliz Aniversário é um filme que evoca doçura em meio a dureza, sabendo que quando a situação é adversa, um desejo precisa, talvez, ser grande demais.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha
