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[49ª Mostra de São Paulo] Kontinental ’25

Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


Realizando o filme mais ou menos na mesma época e com o mesmo elenco que seu Drácula, o cineasta Radu Jude realiza Kontinental ’25 numa escala muito menor, repetindo os temas que lhe são caros. Ele filma utilizando um iphone pelas ruas de Cluj, capital de Transilvânia, e mescla sua encenação com a reação dos transeuntes, rompendo as barreiras da ficção. A narrativa começa com Ion (Gabriel Spahiu), um homem visivelmente de poucas posses, que cata recicláveis para revender.

O personagem aborda pessoas na rua, pedindo oportunidades de trabalho ou, caso não tenham nada que possam oferecer para ele fazer, dinheiro. Algumas pessoas se incomodam, outras dão algo. Quando Ion pega o microfone de uma jovem declamando poesia, a plateia ri. Quando ele enxota um cachorro robô que o perturba enquanto tenta encher uma garrafa de água em uma fonte, algumas pessoas o filmam com seu celular, como se aquilo fosse, de alguma forma, um espetáculo engraçado ou bizarro, e não triste. (Ainda que nós, pessoas espectadoras, tenhamos o privilégio de saber ser encenado, poderia muito bem ser real).

Mas apesar das dificuldades, Ion improvisou para si um teto: ele mora no porão de um edifício, na sala da caldeira. E aí entre a protagonista: Orsolya (Eszter Tompa), uma oficial de justiça, cujo trabalho é avisar que ele não pode mais permanecer naquele lugar. Ele precisa juntar suas coisas e se dirigir a um abrigo. Ela chega acompanhada de policiais, prontos para cumprirem as medidas, um deles com uma câmera na mão.

Ion pergunta para Orsolya “por que você está filmando?” ao que ela responde “para que eles tenham evidência”. É quase como um comentário sobre o próprio filme: uma evidência dos acontecimentos e uma evidência de seus desdobramentos. Porque o que acontece a partir daí é que Angela se retira para dar tempo a Ion para organizar seus pertences. Mas quando retorna, cerca de uma hora depois, descobre que ele se matou, diante da falta de perspectiva.

Jude, então, elabora o sentimento de culpa dessa mulher, que ocupa uma função burocrática mas acaba por ter que encarar a complexidade das dinâmicas que a rodeiam, não só de classe, tomando-se a situação de Ion, mas pelo menos também de gênero e de nacionalidade. O suicídio não deixou de ser noticiado e o fato de Ion ser um ex atleta romeno hoje falido foi trazido à tona, bem como o fato de Orsolya ser húngara, o que levanta todo o complexo histórico de relações entre os dois países na região, onde os húngaros são minoria. Xingamentos misóginos também afloram. Uma conversa com sua mãe (Annamária Biluska) mostra que mesmo minoritários, os húngaros se mostram dispostos a apoiarem a ditadura de Orbán e o sentimento nacionalista prevalece. Ou seja, existe um caldeirão de efervescência política no contexto regional da Transilvânia, que passou para Romênia, como um personagem destaca, apenas em 1918 como espólio de guerra.

Mas isso nem é o mais importante. O que mais importa é a moralidade do ocorrido em um processo burocrático e desumanizante. Jude filma Orsolya tendo diversas conversas com pessoas diferentes sobre a vida, a morte, a banalidade das coisas. Os diálogos soam tão naturais que é fácil esquecer que são atores que estão ali e algumas dessas cenas chegam a passar dos 10 minutos de duração sem corte. É hipnótico. Impressiona a verve naturalista que impregna a mise en scène, enquanto as conversas são absolutamente infrutíferas, porque todos veem exagero no sentimento de culpa.

O desfecho silencioso não poderia falar mais. Uma cidade gentrificada em que blocos e mais blocos de edifícios estão sendo construídos, enquanto uma pessoa se vê sem caminho ao não ter onde morar. (Poderia ser em qualquer lugar do mundo). A ironia amarga do capitalismo que atropela todos (uns mais do que outros). Ao final, o destino de todo mundo é o mesmo: uma lápide. Jude é menos engraçado, menos contundente e mais sucinto, mas ainda ácido em sua proposta. E Kontinental ’25 não deixa de comentar a violência que se esconde na banalidade de processos impessoais em contexto neoliberal.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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