
[49ª Mostra de São Paulo] O Lendário Martin Scorsese (Mr. Scorsese, 2025)
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
O título de O Lendário Martin Scorsese (Mr. Scorsese, 2025) fala por si só. A diretora Rebecca Miller costura uma biografia linear do cineasta em uma conversa entre as obras dele e os depoimentos de amigos de infância, familiares, colegas, colaboradores e, claro, do próprio biografado. Cada episódio é dedicado a uma década de sua vida e produção, com exceção do último, que tenta condensar tudo o que tivemos de Marty no século XXI. Miller faz perguntas precisas e não demora a deixar as respostas dos entrevistados na tela.
Ao longo do documentário, ela é bastante econômica com os depoimentos, e isso não é ruim. Em vez de repetir gente dizendo as mesmas coisas elogiosas sobre o entrevistado — algo que costuma ser o calcanhar de Aquiles desse tipo de produção, como pude constatar recentemente com o doc Milton Bituca Nascimento, de Flávia Moraes —, ela extrai falas realmente memoráveis, seja em anedotas episódicas, seja em confissões do próprio Scorsese ou em análises de terceiros sobre sua obra. O comparativo com o doc de Bituca veio à mente porque ambos contam com falas de Spike Lee. Enquanto o primeiro apenas despeja uma aspa vazia do diretor de Faça a Coisa Certa, a docussérie de Miller traz uma participação bem mais espirituosa de Lee, que arrancou gargalhadas do público no CineSesc ao soltar um shade bem óbvio ao Quentin Tarantino ou ao agradecer a Deus pela asma de Scorsese (por conta da doença, ele foi uma criança bastante isolada, e o cinema virou seu refúgio).
Lee é apenas um entre dezenas de nomes do conjunto invejável de entrevistados que Miller tem à disposição. Gosto muito de ver as leituras de Jodie Foster sobre o cinema do diretor, com o entendimento não apenas de alguém que esteve em dois sets dele, mas de uma pessoa que conhece a engrenagem hollywoodiana e que também é diretora. O conforto que Miller proporciona aos entrevistados garante declarações raras, como a da própria Foster sobre John Hinckley Jr., o homem que tentou assassinar Ronald Reagan para “impressioná-la”; as impressões sinceras de Sharon Stone sobre ser a única mulher no set de Cassino; e um belo momento em que uma das filhas de Scorsese fala sobre como a distância com o pai, enfim, se dissipou quando atuou em A Época da Inocência e ganhou dele toda a atenção que ele costumava dispensar apenas a seus atores.
No meio disso tudo, a participação mais luxuosa para nós, cinéfilos, é a de Thelma Schoonmaker, montadora que conhece Marty desde o início das carreiras de ambos e que se tornou sua colaboradora mais indispensável a partir dos anos 1980. Digo “luxuosa” não porque Thelma seja reclusa. Não é isso, até porque é fácil encontrar entrevistas dela. O presente para o público é vê-la com os olhos em um monitor, analisando ali, para Rebecca, cenas de filmes como Os Bons Companheiros e Touro Indomável. É com Thelma um dos momentos mais importantes do filme para mim. Nessa economia da diretora com os depoimentos, ela questiona a montadora sobre Martin ter tido dificuldades com as mulheres ao longo da vida. A pergunta é sobre os vários casamentos dele, mas acaba servindo de gancho para quebrar um mito que muito incomoda esta que vos escreve: o de que não há mulheres nos filmes dele. A menção ao número grande de atrizes indicadas ao Oscar por filmes de Scorsese e, principalmente, a justiça feita à Ginger de Cassino, ajudam a desfazer essa pecha. Ainda assim, é muito bom que o filme não se furte a falar das falhas de Scorsese como ser humano, principalmente com as mulheres da sua vida real.
Os ganchos de Miller para encerrar cada episódio também são muito eficientes. Destaco o do quarto, que termina com a ascensão de Leonardo DiCaprio ao estrelato. É de arrepiar, porque sabemos que isso vai culminar em uma das parcerias ator-diretor mais relevantes do cinema estadunidense e, mais que isso, vai significar que Scorsese vai, enfim, conseguir realizar seu projeto dos sonhos, Gangues de Nova York. Dito isso, é uma pena que o último episódio seja tão apressado e não haja espaço para uma dissecação maior da obra de Scorsese no século XXI. Imagino que, quando o doc estava em produção, Assassinos da Lua das Flores ainda não tivesse estreado, mas ficou faltando ver algo sobre o filme que marcou o reencontro dos dois principais atores-fetiche de Marty e que, com a Mollie de Lily Gladstone, ampliou seu rol de grandes personagens femininas.
Começar a Mostra com uma docussérie de cinco episódios, que entraria no streaming já no dia seguinte, parecia uma escolha meio burra à primeira vista. Mas que bom que fiz isso. Foi inspirador abrir uma maratona de quase quinze dias de muito cinema com cinco horas dedicadas à obra de um dos caras mais apaixonados pela sétima arte em atividade hoje. Fazer isso em uma sala de cinema, dividindo a experiência com outras pessoas, tornou esse momento bem mais divertido do que seria na sala de casa, sozinha.

Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha.

