
[49ª Mostra de São Paulo] Palestina 36
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
É interessante pensar como filmes distantes no tempo e no espaço podem se aproximar pelas linhas curatoriais de um festival. Em um dia eu fico fascinada com Assassinato sob Custódia, um filme de 1989 de uma realizadora martinicana, Euzhan Palcy, que traz um recorte de acontecimentos de um passado recente sob o governo genocida que ainda mantinha o apartheid na África do Sul. No outro assisto a Palestina 36, filme da cineasta palestina Annemarie Jacir que retrata o ano de 1936, quando, durante o domínio colonial do país que dá nome ao filme pelo Império Britânico, acontece a chegada dos colonos judeus, vindos da Europa, e ocuparam aquelas terras.
São muitas as semelhanças e também as diferenças, entre ambas as obras. A começar pela presença de elenco hollywoodiano ancorando uma circulação mundial, nesse caso os atores Jeremy Irons e Liam Cunningham. A própria temática do colonialismo e da luta anti-opressão é outro ponto. Ambos, inclusive têm um desfecho semelhante, com um sentido próximo: pessoas não adeptas da violência são levadas a praticá-la em situações extremas.
Mas o filme de Jacir parece ter uma posição política menos contundente. Nesse sentido, é de inegável importância a beleza da elaboração de suas imagens, sob o registro da fotografia triplamente creditada a Hélène Louvart, Sarah Blum e Tim Fleming, como uma espécie de narrativa contra hegemônica. Se as imagens que o Ocidente cria da região são de miséria e barbaridade, Jacir mostra a riqueza da cultura, das comidas, das vestes, dos costumes, das religiões, mesmo entre as classes sociais menos favorecidas.
A direção de arte de Nael Kanj constrói um mundo riquíssimo em detalhes, numa tessitura repleta de nuances que separa Jerusalém, a capital, das áreas rurais, como as vilas da região de Belém. Protagonistas muçulmanos e cristãos se revezam, não só para mostrar o contexto local, mas, provavelmente também para ajudar com venda externa do filme. O drama histórico é sem dúvida é feito para encher os olhos.
Mas tudo isso acontece numa escala épica em que a trama às vezes se perde por excesso de núcleos: o jovem que vai trabalhar na cidade, Yusuf (Karim Daoud Anaya); a mulher jornalista, Khouloud (Yasmine Al Massri); o secretário britânico simpatizante Thomas (Billy Howle), o veterano Khalid (Saleh Bakri); a viúva Hanam (Hiam Abbass) e sua filha; o sacerdote cristão Padre Boulos (Jalal Altawil) e seu filho Kareem (Ward Helou).
Ter a ficcionalização de parte dos eventos que trazem o povo palestino ao genocídio que vivem hoje para que o grande público tenha um contexto maior sem dúvida pode ser de alguma ajuda para a causa palestina, se tomarmos que esse filme tenha, claro, uma intensão propagandística. Todo cinema é discurso. Há seus elementos interessantes, como inclusive mostrar a colaboração sionista da elite palestina local e ao mesmo tempo o afluxo financeiro vindo da Europa.
No final, o que mais prejudica a obra é sua própria linguagem, exacerbada no melodrama. Quando um ônibus cheio de palestinos reféns é explodido pelos ingleses com direito a uma criança testemunha caindo de joelhos em câmera lenta, perde-se e muito em termos de emoção. De fato, uma cena como essa mais dessensibiliza pelo excesso do que o contrário.
Não é minha intenção jogar um obra contra outra, mas a impressão que eu tenho é que Palcy, como martinicana, quis que seu Assassinato Sob Custódia fosse um grito, um manifesto o mais sulafricano possível dentro de um sistema de estúdios estrangeiro. Jacir, por sua vez, mesmo podendo escalar seus astros hollywoodianos como coadjuvantes (o que de fato o fez), transformou seu filme, que poderia ser um clamor do povo palestino, no mais convencionais dos dramas para o olhar ocidental. O que não tem nada de errado por si só, apenas é uma proposta diferente. O filme tropeça na expressão, mas ganha sua força ao relatar fatos históricos que provavelmente nunca foram encenados dessa forma (e com esmero) para um público maior.

Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

