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[57ª Festival de Brasília] Suçuarana

Este texto faz parte da cobertura da 57ª Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que ocorre entre 30 de novembro e 7 de dezembro.

Dora (Sinara Teles) está em um posto de gasolina na beira da estrada tentando entregar um grande cachorro amarelo para quem aceitar ficar com ele. Com um apanhado de sacolas, ela pretende deixar o lugar para trás, levando, além de seus parcos pertences, uma fotografia, que mais tarde explica ser de sua mãe em um lugar que chama de Vale da Sussuarana. Parte em busca desse vale, como se fosse um lugar de origem, uma conexão com o passado.

Dirigido por Clarissa Campolina e Sérgio Borges, o filme se estrutura inicialmente como um road movie, em que a protagonista se joga em uma jornada que a atravessa, mas cujo objetivo final é um grande desconhecido: nem ela, nem ninguém com quem encontra, sabem onde fica o lugar procurado. O cão, que depois vem a ser nomeado Encrenca (Tony Stark), aparece como uma espécie de guia desencontrado, uma criatura que dialoga com Dora e suas necessidades, embora nem sempre nas horas esperadas. Encrenca é um flerte com o realismo mágico, que, a despeito de sua presença, nunca se torna dominante na narrativa. O companheirismo entre mulher e cão pela estrada lembra aquele das protagonistas de Wendy e Lucy (2008), dirigido por Kelly Reichardt, e o filme realmente é citado como uma referência pelos cineastas no debate que acompanhou a sessão.

Ao longo do caminho, Sinara encontra com pessoas que a ajudam sem fazer disso um grande gesto. A cobradora do ônibus, quando perguntada até onde pode-se ir com 30 reais, fala das dificuldades de sua vida e indica um lugar, que ao que tudo indica, esticaria o trajeto da viajante. Uma cantora que vive com a filha pequena, que oferece carona, pouso, conversas e afeto. Um senhor (Carlos Francisco) que, após Dora devolver o casaco que ele havia esquecido, coloca algum dinheiro no bolso do mesmo e a presenteia com ele. Essas pessoas são lembretes de uma vida humana que o nomadismo teima em deixar pra trás. Mas Dora, apesar da busca contínua, está bem sozinha.

A estrada é o seu caminho, é seu lugar e seu pertencimento. Os breves encontros não criam vínculos duradouros: a rotina é de eterna passagem. Os planos abertos dão conta de uma paisagem que mostra o esgotamento de recursos deixado pelos humanos: as montanhas enormes devastadas por áreas de mineração que não mais existem. Ela parece pequena e sozinha em cada acostamento. A passagem do tempo é nebulosa e, em certo momento , ela menciona estar há 10 anos na estrada.

Algo que chama muito atenção é como se trata de um filme de texturas. A direção de arte e o figurino constroem um contexto muito palpável para a personagem, especialmente no que diz respeito a suas roupas. É possível sentir as camadas, a sujeira, os tecidos, o paninho amarrado que pode ser um travesseiro, a mochila, a botina puída, tudo marcando os anos que se passam.

A segunda metade do filme mostra uma tentativa de permanência: Encrenca guia Dora para uma comunidade que, coincidentemente ou não, tem e presença do senhor que havia lhe dado o casaco. Aquelas pessoas outrora viviam da extração do ferro e, com o fim da mineração, retiram as peças da fábrica em que trabalhavam para vender no ferro-velho.

Donna Haraway é citada como uma inspiração pelos cineastas. É interessante como isso se traduz no filme, uma vez que a autora há décadas questiona os limites do humano. No seu feminismo ciborgue, as barreiras entre animais por um lado e máquinas por outro se borram e não se deve ter medo dessa hibridização. Dora a princípio não queria Encrenca, mas vínculos são construídos no processo. Por outro lado, o metal só deixou destruição e agora é necessário quebrar as máquinas para ter direitos e permanecer. Ao contrário de Furiosa, em que a máquina é destrutiva, mas também é a reconstrução, aqui ela precisa ser superada. Mas o cão, em contraponto, ainda permanece como espécie companheira. (Permito-me fazer essa comparação que pode parecer esdrúxula porque, além de trabalhar com os texto de Haraway há mais de uma década, creio que ambos os filmes dialogam com ela de maneiras diferentes).

Nesse sentido, o desfecho do filme deixa em aberto possibilidades futuras. Se Encrenca até então guiou, como um espelho do começo da viagem, agora ele que decide ficar. Queimar a foto é uma ruptura, é se livrar de um referencial de uma busca que nunca acaba ligada a um passado que não está mais disponível. Porque na verdade, para Dora, a jornada não tem fim, ela encarna esse movimento. Mas agora ele pode mirar um futuro incerto.

O filme tem uma poética da impermanência. Dora é uma heroína no sentido convencional, que se lança ao chamado para a aventura e que existe em seu próprio espaço. Mas há pouco de convencional na sua trajetória, que não abarca mudanças bruscas e nem aprendizados grandiosos. São nos seus passos silenciosos que se encontra. Seu olhar sisudo descobre acolhida mas não busca refúgio. Sussuarana é um Eldorado, inatingível, e em Suçuarana a estrada nunca termina.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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