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(A Substância, 2024)

No período em que um filme fica decantando na cabeça entre a cabine e a redação da crítica, às vezes ele perturba, às vezes ele adquire novos sentidos e às vezes ele vai sumindo do pensamento. No dia 9, após assistir A Substância (The Substance, 2024), postei que ele era “raso, bonito e divertido, tudo ao mesmo tempo”. E quanto mais eu penso nele, mais o primeiro aspecto se sobressai aos demais (e acho curioso que ela tenha recebido o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes).

Uma espécie de fábula de horror, o filme abre com uma sequência que sumariza a ascensão de Elisabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, representada na instalação de sua estrela na calçada da fama. Enquadrada em plongée, ela aparece como um objeto de curiosidade, como se estivesse sob a lente de um microscópio para para ser analisada. Inicialmente as pessoas param na estrela, tiram fotos, comentam e a reverenciam, como um símbolo da mulher que ela representa. Mas a passagem do tempo mostra que cada vez menos gente se importa. Até que um transeunte derrama, de maneira significativa, catchup sobre ela, maculando-a, e a sujeira lá permanece, sem que ninguém se importe. Com isso a proposta é enquadrar o outro lado da fama: a queda.

A estrela indica que a indústria de Elisabeth é o cinema, mas nunca vemos em que filmes atua. Ela se mostra, na prática, como uma estrela de televisão, apresentadora de um programa de ginástica. Elisabeth executa uma série de exercícios, sorrindo, sopra um beijo e faz uma piscadinha para a câmera, encerrando mais um dia de trabalho. Na sequência, descobre que vai ser demitida, por ser considerada velha demais para aquele formato. E aí começam os comentário que o filme propõe tecer: a fama é transitória, cobra-se de mulheres imagens perpétuas de juventude que são inatingíveis e é fácil descartar corpos que até então eram considerados lucrativos.

A misoginia da show biz é, de novo alegoricamente, encarnada no empresário Harvey (cujo nome certamente é uma referência a Weinstein). Interpretado por Denis Quaid, ele é enquadrado em close, distorcido e grotesco, enquanto vocifera senso comum e mastiga grosseiramente sua comida. Um bufão. O que até atenua as violências que são articuladas em um sistema que cria mulheres ideais e as descarta quando inventam um novo padrão. O indivíduo opressor libera a sociedade de se sentir responsável pelas violências envolvidas na cobrança por e na construção de corpos perfeitos para mulheres.

Elisabeth resolve aceitar um pacto com uma entidade anônima que fornece a ela a substância do título. O líquido viscoso verde fluorescente deve ser injetado para que ela crie um duplo seu, mais jovem, mais bela e mais desejável. Ela fica sozinha no amplo apartamento adquirido com anos de trabalho com aquele corpo que até então era suficiente, sendo lembrada de que um dia já foi considerada ótima. A enorme sala de banho com azulejos brancos e rejuntes escuro lembra um cenário de ficção científica ou a um necrotério. O conto de fadas é meio Branca de Neve (“existe alguém mais bela do que eu?”), meio Bela Adormecida.

Sue (Margaret Qualley), que nasce de sua espinha, é uma parte dela mesma e cada uma deve viver por sete dias enquanto a outra permanece dormindo. Elizabeth é a matriz da juventude. Não se tem maiores detalhes sobre preço, conteúdo, funcionamento da substância: só que ambas são duas facetas da mesma unidade e esse equilíbrio precisa ser respeitado. Trata-se de um pacto clássico, que remete a Fausto, Dorian Gray ou Estudante de Praga. O processo de duplicação é doloroso, mas, a princípio, bem sucedido.

Uma imagem de juventude sorridente e simpática que une o inocente e o erótico com seu collant rosa metalizado, Sue consegue a mesma função como apresentadora que Elisabeth anos antes. A direção de arte não deixa de enfatizar a diferença de longevidade das carreiras: o longuíssimo corredor que dá acesso ao camarim era coberto por cartazes de diferentes temporadas e especiais que Elisabeth havia feito. Sue, novata, só tem um. Mas alcançou a fama em um momento em que corpos são descartados com uma velocidade cada vez maior e parece um desafio conseguir cobrir essas paredes.

A obsessão com a juventude e o corpo escolhido como perfeito fica clara com os ótimos ganhos imediatos que Sue consegue no trabalho. O corpo de Elisabeth não mais corresponde à imagem que ela precisa para a mesma função. Mas quem decide isso? O filme insinua em uma rápida cena em que um grupo de investidores, todos homens e velhos, sorriem para Sue. Não é necessário nenhum tratado para abordar as dinâmicas de mídia, imprensa, público e fandom, mas o comentário, de qualquer forma, é apenas esse. No final, é como se a ideia de um corpo desejável se materializasse por osmose na mente da personagem, que se sente cobrada por uma abstração.

O prazer de desfrutar (e desperdiçar) um corpo jovem é a derrocada do corpo que envelhece. Em filmes sobre duplos, especialmente duplos no horror, a duplicação é inquietante. É a projeção de uma consciência que (se) sente interna e externamente, dividindo uma existência. A diretora, a francesa Coralie Fargeat, parece gostar de brincar com as convenções de subgêneros do horror. Aqui, a duplicação favorece uma espécie de hagsploitation, subgênero que explora imagens de grandes damas do passado envelhecidas, estimulando no público suas próprias percepções etaristas e ao mesmo tempo escancarando esses preconceitos, em um jogo também dual. A mulher que envelhece é apresentada como monstruosa e, muitas vezes, digna de compaixão, simultaneamente.

Filmes assim podem ser veículo para grandes atuações de suas atrizes. E Demi Moore efetivamente se agarra a Elisabeth e extrai dela tudo que é possível. A escolha da atriz para o papel é certeira: integrante do brat pack nos anos 80 e a única atriz a destronar Julia Roberts com a mais bem paga em Hollywood no começo dos anos 90, o auge de seu sucesso foi marcado por filmes que destacavam sua desejabilidade. Ao mesmo tempo, levava ao limite a imagem pública de seu corpo, como quando posou grávida e nua na capa da revista Vanity Fair, algo tratado como tabu em 1991.

Se o desenvolvimento da psique da personagem é raso, a corporalidade, por outro lado, extravasa. O espelho constantemente presente é o palco de uma autoanálise que convida a pessoa espectadora a se imiscuir nos detalhes de seu rosto e de sua nudez junto com ela. O batom borrado em um gesto de insegurança e vulnerabilidade diz muito sobre uma alguém que já não encontra no reflexo aquela que um dia foi a mais bela do mundo todo. O grande outdoor com a imagem sorridente de Sue como futura estrela logo em frente à sua janela parece um escárnio, quando o seu próprio retrato, pendurado no meio da sala, dominante, mostra, com sua roupa fora de moda, um passado que ficou para trás

Mas Fargeat às vezes parece se perder na própria proposta. Em seu filme anterior, Vingança (Revenge, 2017), por exemplo, ela busca desconstruir com o subgênero de horror rape revenge, em que uma mulher é estuprada, sobrevive e busca se vingar de quem a violentou. Assim como A Substância, o filme tem um visual bonito, é divertido e até engraçado em alguns momentos, mas não consegue fugir totalmente de certas armadilhas da inversão de perspectiva. Acaba por emular a violência e o olhar masculino, mesmo que sua proposta seja a construção de uma narrativa feminista.

Em A Substância isso se repete. Depois que se apresenta a rala argumentação sobre como as mulheres se tornam descartáveis quando envelhecem, a preocupação toda parece ser uma projeção exclusiva de Elisabeth. Claro, como alegoria, a personagem é metonímica, representa o todo. Mas se ela parasse de se preocupar com a própria imagem, o etarismo e a misoginia sumiriam? Elisabeth tem uma aparência cada vez mais envelhecida, cedendo sua vitalidade para Sue. Mas ela parece vestir uma fantasia que evoca o grotesco. Isso me lembra o texto de Anna Menta chamado Por que homens diretores de horror tem tanto medo de mulheres idosas nuas?, em que comenta alguns filmes recentes que usam dessa estratégica de expor um corpo idoso de mulher como algo chocante. Nesse caso, o que Fergeat quer dizer? Que o medo de envelhecer acarreta em punição (e essa punição é o próprio envelhecimento)? Que realmente o envelhecimento é grotesco e temível? Que nada disso aconteceria se Elisabeth se visse (bela) como nós a vemos? Porque, afinal, esse corpo é colocado nu em cena justamente para evocar horror.

Esse tipo de indefinição no argumento aparece de outras formas. Para criticar a objetificação de mulheres, a câmera constantemente emula o olhar masculino. Assim, a crítica acaba por se concentrar no discurso, mas nem sempre na construção imagética, uma vez que se produz imagens indistinguíveis daquilo que questiona. O resultado é conflitante. E uma vez que a duplicidade é a expressão desse conflito, só há espaço para uma no binário Elisabeth/Sue. A comportamento competitivo das duas, mesmo que não vivam concomitantemente, é acentuado. Duas mulheres que são uma só lutando por holofotes em um mundo controlado por homens. A violência é usada para expressar a frustração. Elisabeth chega a dizer “eu preciso de você porque eu me odeio”. Mas ver a destruição da imagem como forma de destruir a vida (e vice-versa) é, também, extremamente violento, especialmente com o modo como a câmera parece se demorar em cada plano. Pelo menos o que se vê é incômodo.

Infelizmente, com suas 2 horas e 20 minutos de duração, não dá para dizer que o filme seja fluído. A montagem, repetitiva, vai mostrar diversas vezes os mesmos momentos para garantir que tudo (o que não é muito) seja compreendido. O filme ganha fôlego no final, quando o body horror explode e a monstruosidade emerge, mas o excesso é cansativo. Nesse sentido, é interessante como ele dialoga com Love Lies Bleeding, de Rose Glass, também desse ano. Mas se lá a monstruosidade é reivindicada, apropriadamente, como uma queerificação da resposta ao status quo violento, aqui ela é a manifestação da própria violência.

Não é dizer que o filme não seja divertido. Ele extrai risadas, bem como espasmos de desconforto físico. Está tudo lá. É lindo de olhar. As escolhas de enquadramentos poucos convencionais, as cores primárias de Elisabeth em contraste com os tons pastel de Sue, a grandiosidade dos espaços, a sonoplastia que acentua incômodos, a entrega física das atrizes. Mas de resto, está tudo na superfície. Os temas gritam importância, mas as reflexões não se aprofundam. Sim, sempre vai existir um homem para ser machista (e não uma estrutura misógina). Haverá cobrança estética por um lado e vaidade por outro. Jovem será sinônimo de belo e desejável. Mulheres serão ridicularizadas se tentarem frear os sinais da idade mas também se envelhecerem. Mulheres odiarão o que vêm no espelho. Mas não vai além disso e, com o perdão do trocadilho, por mais divertido que seja, falta substância para o filme. Fargeat, em seus dois longas, parece não ter articulado ainda uma forma de inverter a lógica daquilo que tenta criticar e construir imagens de violência que não impliquem no reforço dessas mesmas violências. No final, pelo menos A Substância pode ser um veículo interessante para Demi Moore.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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