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[48ª Mostra de São Paulo] Ainda Estou Aqui

Este texto faz parte da cobertura da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 17 e 30 de outubro. Publicado originalmente na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir, assine aqui.

Ainda Estou Aqui (Brasil, França, 2024, Ficção, cor, 135 min)

Direção: Walter Salles

Sinopse: Rio de Janeiro, início dos anos 1970, quando o país enfrenta o endurecimento da ditadura militar. Estamos no centro de uma família, os Paiva: um pai, Rubens, uma mãe, Eunice, e os cinco filhos. Vivem na frente da praia, numa casa de portas abertas para os amigos. O afeto e o humor que compartilham entre si são suas formas sutis de resistência à opressão que paira sobre o Brasil. Um dia, eles sofrem um ato violento e arbitrário que vai mudar para sempre sua história. Eunice é obrigada a se reinventar e a traçar um novo destino para si e os filhos. Baseada no livro biográfico de Marcelo Rubens Paiva, a história emocionante dessa família ajudou a redefinir a história do país. Vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza.

Comentário: Uma das coisas que fiz ao terminar de ver Ainda Estou Aqui foi recalibrar minhas expectativas. O erro está sempre nelas. Refeito o cálculo, apreciar o filme pela sua proposta e pelo que é.
Havia lido o livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva na semana passada. E ele, episódico e fragmentado, relata os dias do desaparecimento do pai, da prisão da mãe e seus desdobramentos. Volta constantemente àquele momento conforme a passagem do tempo traz novos depoimentos, novos fatos que se somam para entender o que ocorreu. Essa mesma passagem do tempo também mostra Eunice, sua mãe, como uma mulher forte e pragmática, que de dona de casa se torna advogada e passa a sustentar os cinco filhos. E de advogada de pequenos casos de amigos, se torna um grande nome do direito indígena.

Em certo momento da memória, Marcelo fala que quando ele era menor, sua mãe falou para o marido Rubens, que desejava trabalhar e ele sugeriu que ela abrisse uma butique, o que a irritou. Mesmo os progressista tão machistas… Ele reflete que seu pai, acostumado a chegar com a mesa posta e um copo de uísque esperando, caso voltasse pra casa, estranharia sua esposa ausente, na Europa, em alguma reunião da ONU. É uma trajetória impressionante.

E o livro termina trazendo depoimentos, confissões, processos e tudo que gira em torno do assassinato de seu pai, engenheiro e deputado cassado pelo AI-1 da ditadura militar. Algo que fica claro é o quanto as crianças e a própria esposa eram excluídos das ações do pai (provavelmente para protegê-las, mas privando-as da possibilidade de terem uma noção da ameaça em torno deles). Com o tempo a mãe descobre (e compartilha) que o pai recebia cartas de pessoas exiladas e as reencaminhava para parentes e amigos. Também ajudava a manter um apartamento que abrigava pessoas perseguidas pela ditadura.

Marcelo Rubens Paiva faz questão de dizer que o pai não se envolveu com a luta armada, como se houvesse um limite da ação possível naquela situação. De toda forma, o livro dá conta de vários detalhes históricos sobre aqueles anos, especialmente da busca por encontrar uma resposta sobre o que aconteceu com seu pai. E também de mostrar a trajetória extraordinária de sua mãe, que ele claramente admirava, e que ainda estava viva no momento da escrita.

O filme é o filme. É outra coisa. E essa outra coisa é de uma beleza singular. Walter Salles constrói uma narrativa que não é (necessariamente) sobre a ditadura nem sobre as datas, os acontecimentos históricos, os atores políticos envolvidos. É sobre uma família. O longo prólogo nos ajuda a mergulhar no caos solar que é aquela casa perto da praia no Rio de Janeiro. As crianças correndo, brincando na rua e na areia, os pequenos afetos, as risadas, o carinho, os apelidos (Marcelo, como o livro informa, é chamado de Cacareco pelo pai). O entra e sai constante de pessoas e os portões abertos mostram que é uma casa de gente que se dá bem com muita gente. A direção de arte encanta com os detalhes cuidadosos da época e o figurino é esmerado. 

Quando o pai é levado, a claridade é tingida de sombras e preocupações mais mundanas, sobre dinheiro e sobre direitos, emergem. A direção é de uma elegância minimalista, sem arroubos de emoção, quase com um pragmatismo como o descrito por Marcelo sobre sua mãe. Agora ela precisa conduzir sua enorme família e recusa ativamente o papel de vítima do governo golpista e violento.

O elenco é outro dos pontos fortes do filme. As crianças são ótimas. Valentina Herszage, por sua vez, que interpreta Veroca, a filha mais velha, tem o função de, não só fazer a transição do olhar dos pequenos para a visão adulta, como, muitas vezes, com sua câmera caseira, ser o próprio olhar da câmera que registra a família para nós. Selton Mello é, por um breve momento, o pai bonachão e gentil que se torna a ausência. Mas Fernanda Torres. Fernanda Torres é a linha guia e a sustentação da narrativa. Ela encarna vulnerabilidade e força em uma mulher que subitamente precisa ser arrimo e ser tudo.

Ainda Estou Aqui é um filme sobre silêncios e sobre ausência, sobre um vazio sem explicação, sobre um desfecho que tardou por décadas. Ao propor uma história tão minimalista, tão despida daquilo que talvez pudesse ser considerado seus marcos, Salles a transforma em algo que é sobre Eunice e sua força, é sobre os Paiva e a violência vivida, é sobre o Brasil e a brutalidade instaurada, mas é também uma narrativa mais universal sobre luto e sobre ausência. Para quem tem a expectativa de ver os dados históricos, ainda há o livro (e recomendo). No final das contas, sai o filme sobre ditadura e entra um filme numa escala pessoal. E a linguagem do cinema consegue comunicar o restante.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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