
Amores Materialistas (Materialists, 2025)
Celine Song trabalhou alguns anos como dramaturga antes de fazer sua estreia no cinema, no duplo papel de roteirista e diretora com Vidas Passadas (Past Lives, 2023). Baseado parcialmente em suas próprias experiências, ele relata a história de uma escritora coreano-estadunidense que, na sua primeira infância na Coreia do Sul, havia sido prometida em casamento para um amiguinho. Quando seus pais se mudam para os Estados Unidos, eles perdem contato. Mas ele reaparece anos depois, quando ela já está casada com um colega de profissão (na vida real o também roteirista Justin Kuritzkes). Trata-se de um filme lindíssimo sobre decisões maduras e escolhas diárias que fazem todo relacionamento, a complexidade que não exclui tudo que não foi vivido. Então tinha muita expectativa para um segundo trabalho da cineasta.
Dois anos depois e ela escreveu e dirigiu mais um romance, dessa vez Amores Materialistas (Materislists, 2025). Dessa vez o filme é vendido como uma interpretação moderna das comédias malucas (e talvez o erro seja acreditar no marketing). As comédias malucas, um subgênero da comédia romântica cujo ápice se deu nas décadas de 1930 e 1940, são um tipo de comédia romântica de texto afiado e diálogo mordaz. Elas se aproveitam do gênero não só para, obviamente, trabalhar a noção do romance, mas também para focar no humor provocado pelas relações e diferenças de gênero (suas expectativas e convenções sociais) e classe social, se valendo da crise de 29 para ridicularizar os valores burgueses num jogo de morde e assopra.
Ambientado em Nova York, cidade que é o cenário preferido desse tipo de filme, sua protagonista é Lucy (Dakota Johnson), uma casamenteira por profissão, o que vem muito a calhar. Logo no começo vemos ela comemorando com suas colegas na agência em que trabalha o fato de que a nona cliente anunciou casamento. Ela acredita no que faz: formar casais obedece uma espécie de fórmula que leva em conta a renda, a classe social, como foram criados, as opiniões políticas e diversos fatores que fazem com que os potenciais pombinhos se alinhem. Tudo é bastante cínico e mostra, também, o mercado de relacionamentos como isso: um mercado. Um que é particularmente ferino e cruel, especialmente com mulheres depois dos trinta e poucos anos. E esse mercado também não esconde seu classismo, racismo e todo tipo de sanção imposta pela clientela.
Sim, casamento é uma transação comercial. Na melhor das hipóteses, uma transação realizada para criar laços entre grupo, para quem já leu Lévi-Strauss: sanções são criadas, trocas são feitas e assim nós construímos a noção de nós e de eles e nossas alianças. E uma instituição falida, sempre bom lembrar. E sim, o amor romântico é uma invenção moderna (e dizer que é inventado não é negar sua existência). O que os filmes de romance costumam nos vender é a construção desse conceito e a ideia de uma escolha ou de um momento em que tudo parece possível. E aí começam os problemas de Amores Materialistas.
O público, como num tipo específico de comédia maluca (ou “filme de mulher“), é apresentado a dois potenciais candidatos ao coração de Lucy. O “filme de mulher” é um gênero do cinema de filmes com protagonistas mulheres e certas características específicas na centralidade delas na história. Um dos tipos comuns é aquele em que dois homens representam caminhos de vida que a protagonista pode escolher para si, algo que claramente Song quis representar aqui. Nesse caso, o primeiro desses pretendentes é Harry, interpretado por Pedro Pascal (o coitado ainda à espera de um papel no cinema à altura de seu carisma). Harry é o milionário que promete viagens, vida boa e uma parceria sem questionamentos: ele quer uma companheira com quem possa conversar e compartilhar desses momentos. Ele parece ser gente boa, mas o “parecer” é importante porque o personagem mal tem tempo de existir como uma pessoa tridimensional na narrativa. Ele é um fiapo de uma ideia (aos moldes dos pretendentes de Daisy Kenyon em Êxtase de Amor, de Otto Preminger). Ao mesmo tempo, gravitando em outro tipo de mundo, Lucy sequer se sente à vontade para contar seus problemas de trabalho.
O outro pretendente é o ex, John, vivido por Chris Evans, aspirante a ator que trabalha como garçom, divide seu apartamento com várias pessoas e vive no perrengue. Isso anos depois de eles terem terminado o relacionamento exatamente por isso: a falta de dinheiro que se transforma em um fardo. Tudo isso não significaria nada se, quando ele reaparece, a narrativa conseguisse transmitir qualquer confiança de que eles sentem algo um pelo outro. O flashback mostra tristeza e ressentimento, o tempo presente mostra uma simpatia no reencontro, mas e aí?
Lucy está dividida entre dois homens com os quais não tem química e não demonstra amor, apenas porque decidiu que seu próximo namoro vai virar seu aparentemente inevitável futuro casamento. Em comum, ambos aceitam que ela se desvalorize e reiteradamente reafirme que é uma pessoa péssima, velha (risos), mal sucedida, pobre, etc. Quando, no começo do filme, sua cliente chora dizendo que era uma mulher moderna e agora estava se casando e sua família sequer precisava de uma vaca, ela a faz perceber que o noivo a faz se sentir valorizada. Desconfio que, entre John e Harry, nenhum tenha esse efeito.
De qualquer forma não há senso de antecipação nenhum, assim como não há paixão. Quem assiste sabe exatamente o que vai acontecer. Até mesmo o figurino entrega: quando está com Harry, Lucy veste roupas minimalistas, em preto e branco ou cor de joia; quando viaja com John, usa um vestido fluido em tons rosados pastel com babados e aplicações de flores. Quer algo mais explícito no sentido de construção visual de frieza versus romance do que isso?
Não é dizer que Amores Materialistas seja um filme feio de olhar. Pelo contrário, Celine Song, acerta muito na composição das cenas e se tudo estiver perdido, ainda temos um elenco colírio. O triste é, depois de um roteiro tão maduro como de Vidas Passadas, lidar com um em que todas as escolhas parecem rasas e sem peso algum e os personagens não se desenvolvem no processo, nem temos chance de conhecê-los para além do que eles simbolizam.
Na comédia romântica convencional se constrói habilidosamente a ilusão do amor romântico e apaixonado enquanto aqui, desde o começo, o que se espera é que a pessoa espectadora se contente com o “aceitável”. Namorar Harry é aceitável porque ele é rico, gentil e agradável: agrega valor. Namorar John é aceitável porque, apesar de pobre, ele promete se esforçar e eles compartilham de uma história. Ninguém tem sentimentos. Ninguém está interessado em ninguém. Todos apenas se conformam com as opções apresentadas.
Celine Song passou todo o período de divulgação do filme comentando sobre como esses gêneros considerados tradicionalmente femininos (comédias românticas, comédias malucas, “filmes de mulher”), não são levados a sério e são menosprezados de uma maneira geral. Meu apreço por esses filmes sempre foi enorme e como todo gênero cinematográfico, trabalhar com eles implica em entender que gênero é sobre repetição e reconhecimento. Certos elementos só existem e são possíveis dentro desse mundo. O cinismo domina e hoje é fácil criticar uma comédia romântica como pouco realista, mas a proposta deve ser tão realista quanto um slasher ou uma invasão alienígena: ela só atende as demandas do próprio gênero. Da mesma forma, subversões do gênero são bem vindas, mas exigem o esforço de entender o que o faz ser o que é.
De certa forma, a traição de expectativa é que, embora a cineasta mencione esses filmes como referências e se proponha a trabalhar em cima deles, Amores Materialistas nunca se permitiu mergulhar nas convenções das comédias românticas, nem mesmo como proposta de subversão. É como se Song não considerasse o gênero bom o suficiente para os seus intentos e não se interessasse pelo romance, o que faz cair por terra todo o discurso em torno do filme. É uma pena, porque tivesse a diretora feito um esforço maior de criar uma rom-com, talvez seus personagens fossem mais vívidos.


