Bizarros Peixes das Fossas Abissais: Uma Viagem Surrealista pela Imaginação de Marão
Abusando de toda a liberdade que o formato animação permite, Marão, em sua estreia dirigindo um longa metragem, aborda em Bizarros Peixes das Fossas Abissais a jornada surrealista de uma mulher em busca de uma planta com propriedades de cura. O mundo explorado na produção nos leva por infinitas possibilidades, nas quais a imaginação não conhece limites, de tal forma que Douglas Adams ficaria orgulhoso da evolução de seu Gerador de Improbabilidade Infinita.
Um universo único e peculiar
Desde o primeiro momento, somos apresentados a personagens excêntricos em situações absurdas. Em primeiro lugar a protagonista, uma mulher (dublada por Natália Lage) com superpoderes incomuns, inicia uma busca por pedaços de um jarro misterioso que supostamente contém o segredo de uma cura salvadora. Sua primeira batalha vem marcada pelo comando “minha bunda é um gorila”, frase que transforma seus glúteos em um imenso e violento gorila que luta contra criaturas fantásticas extraterrenas (ou não).
Tal característica da mulher me fez obviamente lembrar do Gerador de Improbabilidade Infinita, artefato existente na nave de Zaphod Beeblebrox, que é
[…] uma nova e maravilhosa invenção que
O Guia do Mochileiro das Galáxias, Douglas Adams
possibilita atravessar imensas distâncias interestelares num simples zerézimo de segundo, sem toda aquela complicação e chatice de ter que passar pelo hiperespaço.
A bunda da protagonista não é usada para reduzir o tédio em uma viagem espacial ou para hipersexualizá-la como em uma HQ, mas é sim uma parte de seu corpo que naquele momento permite que a moça se livre de algumas enrascadas. Assim sendo, as soluções para lidar com os problemas, por meio dessas alterações corporais sempre abraçam o absurdo.
Além da mulher, seus companheiros também se caracterizam por algumas peculiaridades em sua forma e personalidade: o melhor amigo (dublado por Guilherme Briggs), uma nuvem com incontinência pluviométrica e uma tartaruga (dublada por Rodrigo Santoro), com Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). A medida que a descoberta do tesouro se aproxima ela enfrenta desde rinocerontes espaciais até os estranhos peixes das fossas abissais que dão nome ao filme.
‘Peixes’ se destaca por sua narrativa não linear, algo que me lembrou em alguns momentos curtas metragens ou esquetes independentes sobre um universo mirabolante. A cada cena, somos surpreendidos por novos desafios, reviravoltas, uma viagem na qual o meio de transporte se metamorfoseia a cada aumento ou redução da velocidade, um mergulho cheio de criatividade e loucura.
Um filme animado rompe com os limites que cerceiam a criatividade
Marão aproveita ao máximo a técnica da animação para criar um mundo visualmente e criativo. Vemos os traços e cores se alternando entre diversos estilos. O filme é uma animação que se libera de amarras e segue por onde achar prudente, ou curioso. A sequencia inicial na qual a mulher luta para pegar um dos fragmentos do jarro que tanto procura usa dos espaços vazios da imagem como forma de surpreender e de dinamizar uma cena de ação animada.
Por exemplo: vemos na tela um fundo branco e sobre este fundo os desenhos da mulher de dos bandidos que ela precisa combater em traço preto, com uma textura semelhante a de um lápis. A medida que o embate acontece, a cada momento que a personagem precisa percorrer o espaço vazio do que seria a cozinha de um restaurante, um novo imóvel ou objeto aparece. É mágico como o corpo da protagonista se move em direção ao teto e do nada, ‘cataploft’, surge um candelabro no qual ela se pendura e impulsiona seu salto em direção à salvação e ao ataque a um outro membro da gangue com a qual luta. É como se a animação estivesse livre de qualquer regra ou lógica. Cada cena é uma obra de arte. Cada cena por si só é uma lente diferente que permite que o espectador tenha uma visão peculiar de outro universo.
Visual e mental: um mergulho por outras fossas abissais
Não é apenas a estética que impressiona em ‘Peixes’. A narrativa do filme também apresenta algumas reflexões. Por trás da excentricidade, a importância da imaginação e da criatividade na vida adulta está sendo abordada. Marão consegue em 1h15 da projeção mostrar adultos diferentes lidando com seus problemas por meio do riso, da fantasia, da ficção. O filme mostra a importância de perdermos a capacidade de sonhar e de nos surpreender com o mundo ao nosso redor.
Outro ponto que devo destacar em ‘Peixes’ é a forma como o texto e a imagem se complementam. Existiu um trabalho para que nos momentos de reflexão da protagonista, por exemplo, a imagem se apagasse para destacar sua voz, reforçando a introspecção do momento. Da mesma maneira, nos momentos de ação, a trilha sonora se sobrepõe aos diálogos complexos e se fundem à diálogos exóticos, entonados de maneira forte, como uma maneira de apontar que naquele momento ‘o pau tá torando’.
Além disso, o filme brinca com a política e a estrutura social, inserindo críticas sutis e interessantes em meio à loucura da narrativa. São momentos que adicionam uma camada extra de profundidade ao filme e tais pontos promovem uma experiência ainda mais envolvente.
Entretanto, há momentos em que o ritmo da história sofre por bruscas alterações, como nas transições entre os momentos mais sérios e os mais absurdos. Nem sempre essas transições são fluidas o que deixa a narrativa um tanto desconexa (e olha que estou falando de um filme cheio de desconexões). Além disso, o desfecho do filme pode deixar alguns espectadores insatisfeitos. Não são todas as subtramas apresentadas que têm uma conclusão clara ou satisfatória.
Ainda assim, Bizarros Peixes das Fossas Abissais é uma animação que merece ser assistida, celebrada e conhecida. O que Marão realiza nessa animação é o que eu denominaria de uma obra de arte que nos move para dentro da tela e para dentro de nossas cabeças. Seu convite ao mergulho em um mundo de imaginação e criatividade, permite que por alguns minutos escapemos para onde tudo é possível e absolutamente nada precisa fazer sentido. Uma viagem surrealista que vale a pena ser feita, mesmo que apenas uma vez, para experimentar a excentricidade adorável de Marão e sua equipe.