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[Cine PE 2025] Tecendo o tempo

Este texto faz parte da cobertura do Cine PE Festival do Audiovisual 2025, Film Festival 2025, que ocorre entre 9 e 15 de junho.


No segundo dia do CinePE 2025 manifestações artísticas se imbricam e formam um tecido composto por memória, resistência, renascimento e permanência.

XI

Ibêji (i·bê·ji): substantivo masculino: Dualidade; gêmeos sagrados; representantes da harmonia; força poderosa, benevolente e protetora. Eu sou você, você é eu, nós somos um só. A profunda conexão dos gêmeos pode modificar as energias em seu entorno. A reverência aos gêmeos mantém a estabilidade. Respeitar seu gêmeo é se respeitar. Conhecer seu gêmeo de se conhecer. A morte da carne não encerra o espírito. Assim devemos reverenciar nossos ancestrais, bem como a ancestralidade que produzimos a cada minuto que se passa.

XII

“Babalu é Carne Forte” (PE), carne forte é Babalu. Brincar de cantos e palmas, ou de pique esconde, ou de corrida carregando ovo na colher, faz e fez parte da infância de algumas pessoas. Para mim foi “Babalu é Califórnia, Califórnia é Babalu, eu danço discoteca, discoteca do Chacrinha, bundinha arrepiada, suvaco de galinha”. A canção da minha geografia territorial ou memorial, se encontra a canção da infância de Diana (Joe Andrade), ao acolhimento de Graça (Gheuza), a desconfiança e deboche de Janete (Janete Cavalcanti) principalmente a proteção de Daniel (Pedro de Jesus) à sua família. Família comunidade, comunidade é amor, amor e memória, memória é força. Dor e memória se entrelaçam em um potente encontro entre presente e passado, no tecer de fios do futuro feito por mão visíveis e invisíveis das relações familiares. O não visto, o mundo espiritual age como protetor dos que ainda não fizeram a passagem.

XIII

Um dos grandes respeitos de nutro pelo cinema pernambucano é o constante encontro que tenho com pessoas transexuais interpretando personagens diversos, mas principalmente mostrando que sua identidade de gênero não é um impeditivo. Diana, assim como Cecília (Aura do Nascimento) em “Salomé” (PE, 2024) antes de tudo é alguém. E não dar explicações sobre a identidade de gênero ou orientação sexual da personagem não representa um apagamento da realidade das pessoas LGBTQIA+, uma afirmação de que atores e atrizes são aptos a interpretar diversas personas em peças de arte.

XIV

“O Carnaval é de Pelé” (PE) é Pelé é do Carnaval: a  descrição do processo de fazer o boi, fazer como objeto de arte e fazer como manifestação cultural a emoção transborda na tela. A família mantendo a tradição é manutenção de uma história, o curta também. Registra e mantém na espiral do tempo a alegria do povo. Pular o carnaval e louvar ao boi é manifestação do povo, pelo povo e para o povo. Tecer cada parte de um boi, brincar, cantar e se emocionar pela memória do que foi construído é formar a teia de atos de resistência cultural e política.

XV

Faz-se cada vez mais necessário buscar conhecer e reconhecer as inúmeras culturas que permeiam a cultura brasileira. O boi é uma cultura difundida de norte a sul do país, em cada região, em cada comunidade, com sua particularidade. O boi é a materialização das relações entre homem, espiritualidade e natureza, e na figura de Pelé ele ganha camadas da fé que move o trabalhador explorado por um sistema que o enxerga apenas como mão de obra. 

XVI

A delicadeza das ilustrações japonesas convertidas em animação evocam muita sensibilidade para se pensar nas dificuldades enfrentadas por corpos transgêneros, em “Kabuki” (SP). Já havia assistido a esse filme, em Brasília, no ano passado, mais uma vez me senti tocada pela delicadeza e artesania do trabalho da direção ao formar imagens potentes por meio de ícones da tradição das máscaras japonesas. Além disso, a sensibilidade de Tiago Minamisawa e da equipe de animadores para abordar a metamorfose de um corpo que se move de forma metafísica em busca do lugar no qual caiba.

XVII

O carnaval de 2021 É uma longa quarta de cinzas. Nessa longa quarta de cinzas o frevo não saiu. “O ano em que frevo não foi pra rua” (SP), antes de tudo é um filme sobre o tempo. O tempo que passava devagar durante a pandemia, a dilatação desse mesmo tempo a cada dia adicionado na espera de poder brincar o carnaval recifense. Tal qual sua fotografia em preto e branco, vivemos alguns anos acinzentados, em meio a ignorância, perda de amigos e familiares, distanciamento social… elementos que nos abateu e ainda deixa alguns rastros de tristeza na vida. Brincar é resistência. T:al qual Pelé que se emociona por não conseguir se mover com a desenvoltura que tinha na juventude, as diversas personagens de “O ano em que o frevo não foi para a rua” compartilham do mesmo sentimento. O quando voltaremos para os cortejos corta o coração de quem vive a festa do carnaval. Seja essa pessoa recifense ou não. Compartilhei do mesmo sentimento que vi exposto na tela.

XVII

Estar em um cinema e ver o público local se sentir abraçado por um filme ambientado em seu espaço sempre gera manifestações espontâneas, que me são muito caras: a cada hino de frevo manifestado com tons de marcha fúnebre, uma parcela da plateia cantarolava as canções. Só quem vive o carnaval entende.

Programação do dia 10 de junho de 2025

MOSTRA COMPETITIVA DE CURTAS-METRAGENS PERNAMBUCANOS

“Babalu é Carne Forte” (PE), Ficção, Direção: Xulia Doxagui, 16’

“O Carnaval é de Pelé” (PE), Documentário, Direção: Lucas Santos e Daniele Leite, 20’

MOSTRA COMPETITIVA DE CURTAS-METRAGENS NACIONAIS

“Kabuki” (SP), Animação, Direção: Tiago Minamisawa, 14’

MOSTRA COMPETITIVA DE LONGAS-METRAGENS

“O ano em que frevo não foi pra rua” (SP), Documentário, Direção: Bruno Mazzoco e Mariana Soares, 71’

Artista visual, desenhista, graduanda em Letras - Tecnologias da Edição. Membro Abraccine, votante do Globo de Ouro (Golden Globe Awards). Pesquisadora de cinema, principalmente do gênero fantástico, bem como representação e representatividade de pessoas negras no cinema. Devota da santíssima trindade Tarkovski-Kubrick-Lynch.

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