Sobre espaços de validação e exclusão
A primeira vez que eu vim a São Paulo eu tinha 17 anos. Foi também a primeira vez que eu tinha saído do sul. Como fruto em parte de cidade pequena, em parte de roça, tudo o que eu vi me encantou. Mas uma experiência me marcou ainda mais que as demais: a visita ao MASP (Museu de Arte de São Paulo).
Explico-me: as artes eram, já então, uma grande paixão minha. Eu passei algum tempo da minha pré-adolescência namorando aqueles grandes livros de capa dura que compilam as obras de artistas específicos. Sem condições financeiras para adquirir qualquer um que fosse, folheava-os na biblioteca da escola pública em que estudava. Eles eram apenas para consulta, então isso precisava ser feito no recreio.
Mas o que eu não tinha consciência ali era de todo o processo excludente, colonizador e machista que estava por trás do filtro que selecionava o que chegava até mim como “os grandes mestres”: quase todos eles homens, majoritariamente brancos e europeus. Isso mesmo já nas vanguardas do século XX. Eu até tentava ir atrás do trabalho de mulheres, de Artemisia Gentileschi a Frida Kahlo, mas ele era muito mais difícil de ser acessado. E não é que elas não estivessem lá produzindo suas obras.
Então eu chego ao MASP, naquele novembro de 2002. O salão do acervo na época era dividido com biombos em saletas menores, desrespeitando o projeto original de Lina Bo Bardi. Quando acessei a primeira saleta, dei de cara com Rosa e Azul-As Meninas, de Renoir. Foi um choque. Comecei a chorar ali mesmo. Dado o contexto em que eu vivia, eu nunca imaginei que iria viajar para tão longe e muito menos que um dia iria ver um quadro tão familiar das ilustrações ali mesmo, na minha frente. Enfim, faltava-me talvez senso crítico na época para questionar porque essa obra em específico merecia um lugar no museu e outras tantas não, mas sobrava-me emoção ao poder ter contato com essa arte.
Passaram-se 15 anos. Depois de algumas andanças pelo Brasil, São Paulo é a cidade em que resido e as visitas ao MASP se tornaram até corriqueiras. (O salão, aliás, agora voltou ao projeto original de Lina Bo Bardi, com suportes de concreto armado e vidro, permitindo que toda a sua área seja abarcada pelo olhar do visitante). Essa semana, levando um amigo para conhece-lo, reparei na lógica da ordem da exibição. No começo estão expostas esculturas chinesas e urnas funerárias marajoaras, de maneira descontextualizada. A autoria é anônima e não pude deixar de lembrar da frase de Virginia Woolf: “Por muito tempo na história, anônimo era uma mulher”.
Depois disso começa uma sequência de pintores europeus, ordenados mais ou menos de forma cronológica. Os primeiros brasileiros eram academicistas, de escolas europeizantes. Todos os autores identificados na primeira metade da exposição são homens. Quase todos são brancos. Tudo atendendo a uma concepção hegemônica do que é essa “arte de verdade”, a que merece ser exposta, a que tem valor.
Na décima primeira fileira do acervo, já no século XX, A Estudante , de Anita Malfati se destaca como a primeira obra de autoria feminina. A ela se seguem os quadros. Guitarrista e Duas Figuras Femininas, de Marie Laurencin; Moças do Boulevard Raspail, de Noêmia Mourão; Velório da Noiva, de Maria Auxiliadora da Silva; a fotografia Sem Título de Barbara Wagner e, por fim, o vídeo O Século, de Cinthia Marcelle em co-autoria com Tiago Mata Machado. Isso mesmo: dentre cento e cinquenta e quatro obras que contei no acervo principal, apenas seis eram de autoria feminina.
Aí eu lembrei daquela campanha das Guerrilla Girls a respeito do MET (Metropolitan Museum of Art, em Nova York). No cartaz, chamam atenção para o fato de que menos de 5% dos artistas expostos são mulheres, mas 85% dos nus são femininos. No MASP temos uma porcentagem ainda menor de mulheres artistas expostas. Não cheguei a contar a porcentagem de nus que são femininos, mas os únicos masculinos são uns quadros de Jesus morto e um ou outro querubim rechonchudo (se é que esses últimos podem ser considerados masculinos).
Não existe uma conclusão para esse texto. O que eu fico pensando é como esses locais validados enquanto instituição, que definem o que é arte e o que não é e qual é a arte digna de exibição e qual é indigna, lidam com a diversidade de artistas presentes no mundo. E como isso afeta o modo como crescemos e somos ensinados a criar arte, consumir arte, apreciar arte, já que o que é divulgado são as obras de autores majoritariamente brancos e homens. Podemos aprecia-las, podemos nos conectar a elas, mas temos que ter consciência do que está lá fora desses espaços de exclusão.
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