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Gladiador II (2024)

Eu tinha 15 anos recém-completos quando Gladiador estreou nos cinemas, lá nos idos de 2000. Amante de filmes de época, fui vê-lo no cinema e essa foi a única vez que assisti até essa semana. Não tenho mais meu diário da época, mas lembro de ter anotado hiperbolicamente que era um dos melhores filmes que tinha visto até então. Fiquei encantada com a mistura de cenografia com CGI no Coliseu, com a grandiosidade das batalhas e lutas, com os detalhes do figurino, com a atuação histriônica de Joaquim Phoenix e a minimalista de Russel Crowe. Talvez eu não tenha escrito tudo isso na época (nunca mais vou saber), mas fato é que a escala da produção me deixou admirada. Épico, apenas. Nesses 24 anos o filme ganhou uma fama de cafona. E, realmente, nem tudo convence as sensibilidades contemporâneas. Ainda assim, sempre que eu revejo esses blockbusters dos anos 90 ou começo dos 2000, especialmente aqueles que eu só vi na época, me pego sentindo falta de um cinemão que era mais palpável.

Avanço para 2024 e agora é a vez de Gladiador II, ainda sob a batuta de Ridley Scott, e lá se foi toda a sensação de solidez e de ver algo que parece tangível aparecer na tela. Escrutinei os quadros em busca daquela Roma que parecia real no primeiro filme e encontrei imagens genéricas. Se antes havia tigre de verdade, agora há animais duvidosos, sem peso, cuja interação com os humanos não é crível. Quando no filme anterior não foi possível fazer as famosas batalhas navais do Coliseu, porque não eram exequíveis, aqui a representaram, mas para quê? Fico pensando nas mudanças que ocorreram no modo de produção de filmes hollywoodianos de grande orçamento ao longo da últimas décadas. É claro que nem sempre a gente responde a toda obra com o frescor que temos aos 15 anos. Mas há um esgotamento que faz com que muitas sejam vazias, meros exercícios derivativos. (Senti isso também com Alien: Romulus, que em algumas sequências interessantes, mas é uma narrativa genérica reciclada de Alien, ironicamente também de Ridley Scott).

A exceção dessa falta de esmero é a figurinista Janty Yates, que já havia trabalhado no primeiro filme. Scott pelo menos continua sendo perfeccionista com esse aspecto e ela brilha. São muitos detalhes para dar conta em uma só assistida, mas é impossível não reparar no trabalho de ourivesaria, nas pedras incrustradas, nos drapeados, nas cores, nos bordados e nos cortes. As tiras de couro trançadas sobre o peitoral rústico de Hanno (Paul Mescal), as folhagens bordadas em fios lustrosos que se desenham na túnica do General Acacius (Pedro Pascal), o peso dos tecidos que envolvem Macrinus (Denzel Washington), as costuras em diagonal, cortadas em viés, do vestido de Lucilla (Connie Nielsen): tudo é perfeito. Nesse sentido a fotografia de John Mathieson também merece destaque, uma vez que é possível ver tudo com iluminação impecável e enquadramentos que permitem observar os detalhes. (A régua é baixo nos últimos tempos).

Dito isso, o filme é desinspirado e sem alma. Paul Mescal, depois de atuações em obras emocionantes como Pessoas Normais e Aftersun não consegue se projetar como o protagonista aqui. Falta carisma e presença. É significativo que, para substituir Máximo, um general que virou gladiador, vivido por Russel Crowe no primeiro filme, seja necessário um gladiador (Mescal) e um general (Pascal, outro ator que eu gosto, mas ainda não mostrou a que veio no cinema) e mesmo assim a soma dos dois se apequena em comparação). Denzel Washington, interpretando o Macrinus, um negociante de gladiadores e articulador político, se sai melhor, um tom acima dos demais.

Mas talvez o que seja mais estarrecedor no filme seja sua política. O dispositivo da mulher na geladeira já havia sido utilizado em 2000, mas o fato de as duas únicas mulheres, Arishat (May Calamawy) e Lucilla, passarem pelo mesmo como motivação para o protagonista é preguiçoso e estarrecedor em 2024. Os imperadores (e alguns senadores), retratados como políticos degenerados, são caricaturas, que misturam comportamento afetado, que foge de uma masculinidade tradicional, e maquiagem doentia. Revela-se que Macrinus, o personagem que é tratado como vilão, foi um homem escravizado que resolveu destruir por dentro as estruturas de poder daquele império decadente. Alcançar o poder para destruí-lo, para rebelar-se contra a exploração seria, afinal, vilania.

Já Hanno, cuja esposa é morta pelo império, que é escravizado e precisa lutar para sobreviver, também deseja se vingar de Roma. Mas, lembrado de que é neto de Marco Aurélio, filho de Máximo e Lucilla e, portanto, príncipe de Roma, rapidamente desiste de qualquer revolta e abraça o poder possível para sua visão reformista. O filme é muito mais sanguinolento que seu antecessor. Hanno (ou Lucius) tem raiva. Sua vitória é uma defesa de Roma, pela masculinidade tradicional exacerbada e pela linhagem, em oposição a governantes efeminados e outros poderosos estrangeiros. Brada “Roma não precisa de gente como você”, para o ex-escravizado estrangeiro que viveu o roman dream e se tornou poderoso. Make Rome Great Again.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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