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Homens de Barro (2024)

Com nomes incomuns e uma narração em off descrevendo suas histórias, dois meninos, Pássaro e Marciano, vivem vidas normais, até certo ponto, de crianças em uma cidade muito pequena, com mais natureza do que perspectivas. No entanto, a história de Homens de Barro não pretende de forma alguma se distanciar ou esconder sua referência shakesperiana, sublinhando uma proximidade com a literatura e com a tragédia. Assim, a voz que descobre-se mais tarde ser de Ângelo (João Pedro Prates), o irmão que era pouco relevante na introdução do longa, narra como sua família, os Miranda, travam uma rivalidade de anos com os Tamai, poeticamente situados lado a lado, vizinhos de casa e concorrentes no mesmo negócio. Os pais, homens que trabalham com barro, lideram famílias tradicionais interioranas, marcadas pelo patriarcado. Dessa forma, Angelisa Stein dá grande espaço para esse desenvolvimento inicial, da infância dos meninos, estruturada em uma base machista e grosseira, com mães apagadas.

É uma escolha um pouco dura do filme que as mulheres fiquem no canto (afinal, as mães também são parte fundamental na criação), para que seja traçada a trajetória desses homens, de crianças doces a jovens adultos complicados, tudo como consequência de uma rusga entre duas famílias, pautada nas toxicidades patriarcais. Os pais gritam durante as refeições, impõe aos meninos chorosos que “virem homens”, enquanto Pássaro e Marciano querem apenas brincar juntos, exercendo naturalmente suas infâncias. A tragédia que finda a vida, ou presença, desses pais, marca o fim do “primeiro ato”, cortando para o amadurecimento desses dois meninos que se tornam completamente distantes. Neste ponto, as cenas belamente fotografadas que unem os corpos dos dois, indicam uma proximidade inexistente. Marciano (Alexandre Borin) é colocado quase tão de lado quanto sua mãe dentro do filme. O foco permanece em Pássaro (Gui Mallmann), em uma cidade que passa a ser dominada por jovens um tanto desocupados, mais preocupados com a próxima festa, a próxima boca e o próximo corpo.

Ainda muito permeado pelas brutalidades do patriarcado, esse lugar sem nome, em que o sotaque do sul mistura-se ao espanhol, representa um Brasil e uma Argentina de muito conservadorismo e pensamentos retrógrados, incentivados por líderes lunáticos, tudo concentrado no microcosmo das estradas de terra e casas de barro. Angelisa Stein e seu codiretor Fernando Musa possuem alguma dificuldade para ultrapassar as limitações da produção independente e dos poucos recursos, mas demonstram grande paixão por contar essa história. Ainda que falte maturidade na direção e no roteiro, o texto garante alguns diálogos que retratam com muita espontaneidade a realidade da sociedade brasileira atemporal, dos preconceitos aos clichês maternos. O destaque fica com João Pedro Prates, que transita com naturalidade na obra, parecendo mais pertencente a ela, e confortável, do que a maioria. 

É por causa de Ângelo que acontecem algumas das melhores cenas, com a fotografia sempre muito interessante de Bruno Polidoro. A que mais chama atenção é o primeiro flerte entre o caçula dos Miranda e Pássaro, que ocorre em silêncio, e, por toda construção dessa cidade cheia de machismos e convenções patriarcais, de homens violentos e péssimos exemplos, a aproximação de ambos em público, em uma festa no bar badalado local, causa um misto de expectativa e insegurança. Homens de Barro assume tanto a impossibilidade desse romance que, toda e qualquer representação de beijos e sexo entre os dois jovens é apresentada entre o desejo (vontade), e a lembrança, nunca se dá como um acontecimento concreto no momento presente. Pela curta duração do filme, essa relação acaba sendo pouco explorada, assim como outros aspectos relevantes ao redor da história, então, na linha da materialidade sobra apenas um carinho e amizade entre Pássaro e Ângelo.

Homens de Barro concentra-se, portanto, muito mais na rivalidade que se dá como herança da sociedade patriarcal de pensamentos limitados. Como os dois homens, viciados em jogos, constantemente vistos no bar e com amantes, querem ensinar seus filhos a serem “homens de bem”, e acabam tornando-os apenas uma continuação de sua postura violenta. A tragédia retorna com uma encenação típica de alguma representação amadora de Romeu e Julieta, o que condiz com o tom geral da obra, e finda a história pensando a problemática muito mais nesse campo masculino tóxico, causador de grandes males sociais, do que creditando a violência como consequência da homofobia, embora uma questão sempre esteja muito próxima da outra, na realidade. 

Vê-se, portanto, como existem intenções boas e interessantes, apesar da dificuldade em as desenvolver de forma mais eficiente. Das belas cenas e momentos que elevam o longa, fica um desejo de ver mais sobre Pássaro e Ângelo juntos, de que esse romance seja colocado em foco, seus toques e afetos, concretizados de fato, experienciados em uma camada mais material, o que não somente agregaria à tragédia proposta em si, como também ultrapassaria a limitação que o próprio filme coloca.

Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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