INDIANARA
Indianara (2019), de Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa, longa candidato à Palma Queer ano passado em Cannes e que hoje estreia por aqui, é um registro audiovisual poderoso e importante de momentos históricos atuais do Brasil e da luta de pessoas trans pela liberdade de existir e de ocupar espaços. Sem intermédio de legendas ou de narração – mas que nem por isso soa distante nem isento – somos convidados a participar um pouco da rotina e a acompanhar a trajetória da militante Indianara Siqueira de forma natural, o “dia a dia sem maquiagem da resistência”, como ela mesma disse numa entrevista.
Eu conhecia a Indianara das conversas com a Duda (Indianara é o nome de uma das gatas dela!), e foi impossível assistir a esse documentário sem lembrar o tempo todo da luta comum da minha amiga, primeira candidata trans a disputar o Senado, criadora da ONG Transvest, tantas coisas além disso eu teria pra dizer de Duda Salabert… Lembro da Duda informando uma plateia que a expectativa de vida de uma travesti no Brasil é apenas 35 anos, e do corajoso rompimento dela com o PSOL, partido que expulsou Indianara e impediu sua candidatura como deputada federal nas eleições de 2018.
Indianara é fundadora e matriarca da Casa Nem, abrigo no Rio de Janeiro, que assim como a Transvest aqui em Minas, promove acolhimento e educação para pessoas LGBTQI+ em situação de vulnerabilidade. É “vegana, anticapitalista e puta”, como se define, reafirmando também o lugar marginalizado da prostituição, para romper com uma invisibilidade histórica e exigir direitos para seus pares.
O filme parte de um enterro vazio para a Marcha das Vadias em 2017, entre outras pautas e manifestações, passa por trivialidades como pegar ônibus e beber cerveja com o marido cis “macho alfa”, que fala abertamente sobre o fato de ele ser soropositivo, até a lágrima ao lembrar do levantamento de números de jovens travestis mortas, o “masculino” na ficha da prisão na França, além de cartas de tentativas de suicídio relidas e outros papéis queimados num ritual sem glamour numa fogueira, no mesmo quintal onde antes rolou uma festa com piscina e celebração da vida. A alegria do casamento é seguida pelo luto de Marielle e pelo o choro infinito pelo resultado as eleições ao final de 2018, início da ameaça fascista que se instaurou no país desde então. Em meio a tudo isso, e sempre acompanhada por câmeras de segurança, a protagonista passeia com os cachorros e dorme com os gatos, todos pretos.
Nesse contexto, é muito significativa a epígrafe – diante da lápide de mais uma delas: “Quando morre todo mundo é igual” – e o epitáfio no desfecho, a música composta e cantada a capella por Indianara: “Sou um tanque de guerra pintado de rosa choque. Se você não quiser me ver através da sua íris, feche seus olhos ao me ver passar, porque o meu estandarte tem as cores do arco íris”.