JOKER
Joaquin Phoenix renasce a cada atuação e mais uma vez entrega – não apenas empresta – seu corpo e alma ao personagem. Coringa é a dança de um palhaço triste, que escreve em seu diário epitáfios funestos como “espero que minha morte faça mais sentido do que minha vida”.
As fantasias de Arthur Fleck se misturam à diegese do filme de forma tão fluida que embolam as crenças e referências de realidade para ele e para o espectador. Sua auto-imagem de sucesso é também deturpada e fantasiosa. Nesse ponto o longa se aproxima da materialidade imaginária da inteligência artificial em HER (2013), de Spike Jonze. De forma semelhante, no onírico Você Nunca Esteve Realmente Aqui (2017), da Lynne Ramsay, o personagem de Phoenix também dedica sua vida para cuidar da mãe idosa. Durante este filme de origens, tão sangrento quanto e ainda mais sombrio do que Logan (2017), é impossível não lembrar ainda de Rede de Intrigas (1976), do Lumet.
Estou longe de ser fluente em nerdismos e HQs, mas as conexões com o menino Bruce me pareceram bem encaixadas na adaptação, a julgar pelo colar de pérolas espatifado no beco escuro na cena clássica com o casal Wayne. Torna-se cada vez mais difícil estabelecer comparações entre outros Jokers: pensei que fosse insuperável a épica atuação de Heath Ledger em Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008) mas não ouso mais definir um preferido, sem esquecer jamais de Cesar Romero e Jack Nicholson. Quanto ao apenas estiloso Jared Leto ao lado de minha querida Arlequina no tosco Esquadrão Suicida, seria melhor ter esquecido.
Filmes de terror já nos ensinaram que um palhaço é muito mais apto a despertar medo, perturbação e estranheza do que risos e alegria. Além da subjetividade e crueldade inerentes ao humor questionadas pelo personagem em rede nacional, é intrigante a metáfora de se usar uma máscara e desempenhar um papel para que a convivência social seja possível e a ironia de que esta mesma máscara exponha uma verdade humana crua e horrível de ser contemplada.
Perdida entre minhas noções confusas de justiça, moral e distinções relativistas entre certo e errado, é fascinante observar os mecanismos que apontam o crime como saída e buscam justificar a violência como uma reação de defesa contra a desigualdade social. Sem assistência adequada para sua condição psiquiátrica, Arthur era triste, dopado e resignado. Entender suas motivações e dificuldades o humaniza e cria uma perigosa empatia. Ele passa de alguém que só não é invisível por conta das fantasias a um herói torto dos marginalizados, admirado pela força e coragem subversivas. Sua revolta e vingança se tornam sinistras e a anarquia que Coringa inspira faz pensar se há possível mudança de valores e de estruturas sem caos.