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[47ª Mostra de São Paulo] Armadilha (2023)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


Em Armadilha (The Trap, 2023), Yovo é um minerador aposentado e viúvo que mora sozinho na beira do Danúbio. Ele tenta viver em uma certa harmonia com o ambiente que o rodeia. Logo na abertura o vemos coletando garrafas pet e outros lixos largados na mata e nos bancos de areia à beira do rio, tentando em vão limpar o lugar do estrago feito por campistas e outros visitantes. Em seguida, como um recado aos governantes da cidade, leva os inúmeros sacos que recolhe e despeja todo o conteúdo na praça central, em frente à prefeitura. A cineasta búlgara Nadejda Koseva e o roteirista Boyan Papazov propõem uma mensagem ecológica muito clara.

Mas o protagonista vai ter que lidar com algo mais difícil que o lixo cotidiano: o poder financeiro, o descaso daqueles que o detém pelo bem-estar alheio e a corrupção que o rodeia. Em algum momento, um grupo de capangas locais trazem, de helicóptero, um javali gigante para uma ilha perto da casa de Yovo e o soltam na floresta. O animal, grande demais e incontrolável, mata um dos cachorros deles. A intenção é que ele fosse oferecido para um milionário estrangeiro, apreciador de caça, como uma espécie de propina ou prêmio para que ele investisse em um depósito de lixo nuclear no local.

Como o animal não agiu de acordo com o esperado, tentam forçar Yovo a emprestar seu cão, que seria mais treinado. Para isso passam a ameaçar pessoas ao seu redor, especialmente a namorada de seu ex-genro, uma mulher que não tem visto de permanência no país. Significativamente, a mãe dela, sobrevivente do desastre nuclear de Chernobyl, faleceu anos depois de câncer. Essa relação entre a usina nuclear de um lado, e o depósito de outro, são uma mostra da forma como os temas são abordados com mão pesada e sem muita sutileza.

Mas Yovo é um personagem interessante, colocado em oposição a esse poderio. Com um jeito de ser sisudo e sério, demonstra sua força nos pequenos gestos de acolhida e guarda seu sorriso para poucos momentos de entrega. Na vida real, pessoas como ele são facilmente acusadas de serem excessivamente idealistas, ou mesmo radicais. Nesse sentido, a relação que estabelece com o ambiente, especialmente a fauna, e o modo como se isola dos humanos, podem ser comparados com o comportamento de Janina Dusheiko, a a protagonista do livro Sobre os Ossos dos Mortos, de Olga Tokarczuk, adaptado para o cinema em Rastro (Pokot, 2017), de Agnieszka Holland. A diferença é que ele, por trás da casca de dureza, manifesta uma delicadeza que está sempre lá. Isso é especialmente perceptível na forma como tenta recuperar animais silvestres machucados, como dois corvos que sempre o acompanham, ou um lobo salvo de uma armadilha de caçador, mas também na sua lida com crianças.

Com seu protagonista endurecido pela vida e ainda assim sensível, Armadilha tece uma narrativa maniqueísta, mas, nesse caso, talvez não haja como ser diferente. O filme discute temas contemporâneos sobre a natureza e a necessidade de preservá-la, dando mostras de que uma pessoa só não é suficiente para isso, dada a escala do ambiente ao seu redor, mas pode resistir (não sem consequências) e influenciar positivamente as demais.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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