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Nasce uma Estrela (A Star is Born, 2018)

É fácil encontrar na internet um vídeo de Stephanie Germanotta aos dezenove anos tocando piano e cantando uma música de sua autoria: os pés descalços no pedal, o cabelo naturalmente castanho, o vestido sem glamour, a voz intensa e a entrega de um talento cru, mas patente. A jovem mostra domínio sobre a arte que cria, ainda que sem os elementos de polidez que a tornam vendável. Alguns anos depois, rebatizada Lady Gaga, se tornou mais que cantora e compositora: é uma performer, uma artista que cria uma fantasia de si a cada aparição pública, arrebatando fãs nesse processo. Gaga é um combinado de aptidão, figurino, acessórios, danças, aparições marcantes e refrãos que grudam no cérebro por semanas. Mas por trás disso tudo está aquela mesma adolescente que queria expressar sua arte junto ao piano. É difícil não traçar paralelos entre sua própria trajetória e a de sua personagem, Ally, em Nasce uma Estrela.

Essa é a quarta versão da história, quinta se levarmos em consideração What Price Hollywood?, de 1932, que foi supostamente plagiado na primeira. Em 1937 Janet Gayner interpretou a aspirante a atriz que vai a Hollywood e se apaixona por um ator veterano. Em 1954 a protagonista passa a ser uma aspirante a atriz de musicais, vivida por Judy Garland, em uma das atuações mais memoráveis de sua carreira. Por fim, em 1976 o foco volta-se para o mercado fonográfico e Barbra Streisand interpreta uma aspirante a cantora. Agora é a vez de Gaga, no papel da jovem cantora que conhece o decadente astro de country rock Jackson Maine, interpretado por Bradley Cooper, que também assina o roteiro, juntamente com Eric Roth e Will Fetters, bem como estreia na direção.

A primeira metade do filme se concentra no encontro entre ambos os artistas, construindo uma relação verossímil para os dois. Maine assiste Ally cantar em um bar de drag, ela mesma montada à lá Edith Piaf, interpretando La Vie en Rose. A câmera treme enquanto gira em torno deles, registrando a emoção desse encontro e o encantamento dele pela presença de palco dela. A performance é hipnótica. Nesse momento, a participação de Willam e Shangela, duas participantes de RuPaul’s Drag Race, traz à trama para o humor camp, mas não distrai quem assiste da interação entre os protagonistas. Depois, quando os dois conversam no estacionamento, a câmera se afasta e eles são enquadrados de costas. O espectador é colocado no papel de espiar sem acesso total a esses primeiros momentos de intimidade.

O convite de Maine para que Ally suba ao palco com ele é decisivo: a aposta no seu talento, o desejo de compartilhá-lo com o restante do mundo, a emoção de um show lotado. A direção de Cooper cola a câmera no rosto de ambos. Ela não deixa respiro, não passeia para o explorar o ambiente. Com isso temos um duplo efeito: ao mesmo tempo somos confinados ao mundo do casal que se apaixona e às suas reações, especialmente as expressões faciais, mas somos excluídos da vibração da plateia que pode ser apenas ouvida. Dessa forma, a consagração de Ally enquanto figura pública perde uma parte de sua potência, mas aprofundamos nas reações da personagem. Cooper opta por essa abordagem em outros momentos do filme, preferindo focar no casal que se forma dali em diante do que nas repercussões que eles provavelmente teriam gerado em tempos de rápido compartilhamento nas redes sociais.

Muito mais consistente em seu resultado que a versão anterior da história, o filme chega, mesmo, a superar todos os anteriores em alguns aspectos. Um deles é a forma como a relação se constrói: é inevitável comprar, em meio ao carinho mútuo e ao respeito profissional, a ideia do relacionamento entre Ally e Maine. Mesmo nos piores momentos entre os dois, é o vício, e não a possível inveja pela ascensão de sua companheira, como nas versões anteriores, que o motiva. Ocorre, também, a demonstração de desconforto por parte de Maine, preocupado com a possibilidade de que ela perca sua autenticidade no processo de tornar-se famosa, uma vez que sua carreira passa a ser moldada por marqueteiros que criam uma roupagem com maior apelo popular para o produto que tinha a oferecer. Não à toa, a música que marca sua consagração, com uma participação no Saturday Night Live, é também a mais ridícula do filme, com seus versos propositalmente caricatos: “Why do you look so good in those jeans? / Why’d you come around me with an ass like that?“. É o papel oposto do ocupado por Shallow, na trama. A canção, composta em dupla, é a combinação de parceria e liberdade criativa, resultando em uma melodia que representa tanto a proximidade entre os dois quanto os talentos colocados em jogo.

As atuações aqui são sólidas: Gaga encarna doçura e naturalidade com uma entrega de uma verdadeira artista e Cooper projeta um parceiro à altura, oscilando entre o companheirismo, a culpa, o medo e a dor causada por seu vício. Sam Elliott, por fim, encarna o irmão mais velho que exerce o papel de figura paterna, preocupado e ríspido ao mesmo tempo. Por isso, seu comentário final sobre Maine é tão pesado, ao ignorar o histórico de problemas do irmão, uma pessoa que precisa de ajuda, culpando-o sem ressalvas pelos ocorridos.

Após a cuidadosa construção de um relacionamento crível, com altos e baixos, com dúvidas e certezas, com companheirismo e solidão, o filme entrega o impacto final flutuando entre luzes vermelhas e desarma totalmente o espectador. Nasce uma Estrela funciona depois de tantas versões talvez justamente por causa da familiaridade dos temas abordados: a fama só é possível com certa concessões e o amor nem sempre é capaz de superar tudo, e se mesmo assim todo artista está disposto a correr esse risco, o que temos de humano é o que faz valer a pena. Mas para além dos temas, se destaca pela soma dos talentos envolvidos, que compõe um resultado memorável.

Nota: 4 de 5 estrelas

 

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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