
O Último Azul (2025)
Desde que venceu o Urso de Prata em Berlim, O Último Azul se tornou um dos lançamentos brasileiros mais aguardados da temporada. Já passaram mais de 5 anos desde que Gabriel Mascaro chamou atenção com outra distopia, mas, se Divino Amor tinha uma relação muito mais inflamada e pueril com o destino político do Brasil, remover a necessidade de um discurso expositivo com um oponente obrigatório foi o que pavimentou caminhos muito mais interessantes para este novo filme. O cineasta amadureceu seu olhar e sua crítica, além de construir uma obra que transborda sensibilidade ao se concentrar muito mais em sua personagem e, partir dela, relacionar o mundo ao seu redor.
Tereza (Denise Weinberg) é a grande luz de O Último Azul, mas é também a forma como a direção de Mascaro e a fotografia de Guillermo Garza a integram ao mundo, e à natureza, um dos maiores acertos do longa. Nesta distopia que não desconfigura a realidade de um Brasil atual e atemporal, o cineasta não imagina futuros neon, avanços tecnológicos ou retrocessos apocalípticos. A estética é do presente, mas a história insere um elemento complexo e curioso na estrutura sociopolítica: idosos a partir de 80 anos de idade perdem as rédeas das próprias vidas, tendo as guardas passadas aos filhos, e são enviados para uma colônia da qual nunca voltam.
É neste contexto que a mulher um tanto desanimada com a vida, Tereza, recebe um choque de realidade ao ser incluída no programa três anos antes do que havia imaginado. O Último Azul a acompanha em sua relação com tudo que a cerca. Embora viva na Amazônia brasileira, ela nunca desfrutou de uma viagem, nem mesmo por ali perto, não conhece a região, viveu uma vida de trabalhos, dos remunerados para garantir seu sustento, ao cuidado, sem pagamento, de seus familiares.
A história de Tereza é a história da grande maioria das mulheres que são a base das famílias do país. É esta conexão com uma realidade tão atemporal que faz com que O Último Azul valorize muito mais a humanidade e sensibilidade, permitindo que sua distopia e críticas ao sistema existam de forma mais elaborada e inteligente, sem jamais roubar o discurso. Tereza é atravessada pelo capitalismo e pelas políticas de seu tempo, e principalmente pela opressão do dinheiro, mas sua jornada de descobrir a vida e se relacionar com o meio consegue se sobressair, deixando um tom mais agradável e esperançoso.
Desde o princípio, vê-se como o capital é o rei da dinâmica do filme. A protagonista não interessa mais ao governo, pois, por sua idade, não produz o suficiente para compensar o quanto tiraria o foco de sua filha de sua ocupação econômica, supostamente. É com seu dinheiro guardado que consegue ir atrás de um sonho, viajar uma última vez antes do exílio. São os bolos de notas que financiam com facilidade alguns desvios ilegais na jornada, até mesmo a fé se torna uma maneira fácil de lucrar, e é com essa mesma lógica que Tereza descobre que pode comprar, literalmente, sua liberdade.
No entanto, são as experiências e trocas humanas que realmente impactam sua trajetória. Embora tenha sido largamente divulgada a imagem em que Denise Weinberg divide a cena com Rodrigo Santoro, a participação do ator é breve, pois todas são. O Último Azul estrutura-se como uma espécie de road movie ao longo dos rios da Amazônia e, a cada parada, apresenta a Tereza uma nova pessoa e, com elas, novos aprendizados. O condutor de barco, vivido por Santoro, a introduz a uma perspectiva lisérgica do futuro, além de dar-lhe a autonomia de conduzir sozinha uma embarcação. O personagem de Adanilo indica uma rota de alto ganho financeiro, com altos riscos, além de algum ensinamento sobre depender dos outros para realizar seus desejos. Por fim, Roberta (Miriam Socarrás) é quem lhe abre os olhos para a possibilidade real de liberdade.
Enquanto Tereza descobre o prazer pela vida, ao lutar para não a entregar nas mãos do governo, é justamente um certo desligamento com o sistema tradicional que a leva a novas alegrias e sensações – embora a opressão do dinheiro seja inescapável. A câmera se aproxima do rosto da personagem em diversos momentos, buscando em seus olhos a sede pelo aprendizado e conhecimento, mas abre os planos sempre que precisa ilustrar seu deslumbramento pela grandiosidade do mundo ao seu redor. A natureza é fundamental neste ponto, são os animais que estão sempre presentes, em vida e morte, a água que corre e leva Tereza em frente, o verde que emoldura seu caminho e o céu que indica o espaço além da gaiola metafórica de sua existência.
A independência que Mascaro trabalha a partir de Tereza não é a de puramente se virar sozinha, já que para essa e tantas outras mulheres isso é inevitável, mas é o feito de poder comandar sua vida como bem entender. Ao colocar a idosa na guarda da filha, o longa a vê perdendo ainda mais a autonomia, um retrato totalmente baseado no capital, mas esse é provavelmente apenas o ápice do que foi uma longa vivência trabalhando em prol de outros. É lindíssimo ver Tereza largando tudo e priorizando a si mesma, aprendendo a dirigir o barco e apostando todas as fichas em sua liberdade.
Mascaro condensa tantos pensamentos, reflexões e sentimentos em menos de 90 minutos e coloca a pessoa espectadora em uma embarcação, o convite é de navegar com Tereza e descobrir o Brasil pelos olhos de uma mulher que encontra a si mesma como se fosse a primeira vez. E o destino só pertence a ela. Embora todas as relações políticas e sociais possam ser enxergadas facilmente, O Último Azul tem um discurso muito mais maduro que a maioria dos filmes brasileiros dos últimos anos. O segredo parece ser uma relação genuína e humana com a história, deixando de lado o discurso didático e expositivo. Existe esperança no futuro quando se assiste a esta obra.


