
Onda Nova (1983)
Dizer que o tempo é cíclico se tornou clichê em alguns contextos, mas os clichês existem justamente para serem usados: o tempo do filme Onda Nova é agora, mas foi também 1983, ano de sua realização e quando, após lançamento na Mostra de Cinema de São Paulo, o filme foi integralmente censurado pelos órgãos da ditadura civil militar vigente no período e assim permaneceu anos longe das salas de exibição.
Em 2025, o relançamento do filme em cópia restaurada encontra o mundo sob a constante ameaça do retorno de governos de extrema direita e a progressão de um conservadorismo que passa inclusive por discussões sobre a validade ou não de cenas de sexo em filmes e séries.
Para além de um trabalho de arqueologia do cinema brasileiro, bastante importante num país que pouco incentiva a preservação audiovisual, o retorno de Onda Nova às salas de exibição carrega um caráter disruptivo: a liberdade extrema experimentada pelos personagens, ao mesmo tempo em que abraça uma parcela significativa da população jovem, universitária e artística das cidades, provoca outra parcela, a mesma que clama pelo retorno do militarismo e se incomoda com qualquer aceno à discursos não binários ou patriarcais.
Diante do fenômeno desse retorno, falar sobre o filme se torna tarefa complexa.
O grupo de jogadoras do Gayvotas Futebol Clube nos são apresentadas numa dinâmica de peneira e galhofa, muito peculiar ao futebol da Boca do Lixo e ao cinema de várzea. Meio cena de apresentação, meio carta de intenções, muitos dos elementos estéticos fundamentais para a história se apresentam: inversão de papéis sociais, irreverência, personagens femininas em papéis ativos e muita música.
Aos poucos vamos entrando nos conflitos individuais das jogadoras, suas relações com o futebol, com suas sexualidades e com a cidade de São Paulo: pais caretas, namorados indecisos, rolos, e toda a liberdade que a juventude oferece para experimentar desde penteados, a drogas e parceiros sexuais. Fazendo uma digressão e aproximando este filme da novela Tieta (1989), reprisada atualmente na TV aberta, é interessante acompanhar o espanto com os temas destas produções dos anos 1980, como a presença de trisais, pessoas trans e prostitutas, em especial numa trama de horário nobre, num mundo muito careta e ainda atormentado pelos fantasmas da ditadura.
Nus frontais no chuveiro do vestiário, sexo sáfico no banco de trás de um fusca e até Caetano Veloso aparece nesse táxi, numa pegação que circula por diversas ruas de São Paulo. A naturalidade com que o tema do aborto é tratado, na base da camaradagem, do cuidado da mulher mais velha que acompanha a enteada no procedimento e das amigas que a acolhem na recuperação são o ponto alto do filme pra mim e refletem a coesão do elenco, que poderia ter ganho premiação e se tivesse circulado festivais.
E, de fato, a força de Onda Nova é manter a radicalidade da narrativa por meio do choque de costumes e do bom entrosamento do elenco, percorrendo seu arco até o ato final, o signo da liberdade extremada reivindicada num jogo de roleta russa. A aposta de que o mundo segue girando mesmo depois da partida de alguém e a mensagem de que quem fica deve continuar perturbando.



