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Os Silêncios do Palácio (Samt el qusur, 1994)

“Minha vida foi uma série de abortos e canções natimortas”.

Início da década de 1950: a Tunísia se vê mergulhada em uma revolução que levou à sua independência da França. O cenário político turbulento serve de pano de fundo para o filme, primeiro longa de Moufida Tlatli, considerada a primeira diretora árabe a dirigir um longa no mundo árabe. Enquanto no mundo exterior há luta armada, o que ela captura são outras lutas nem sempre visíveis a todos, mas travadas diariamente dentro dos muros de um palácio.

A trama é abordada sob o ponto de vista de uma cantora chamada Alia (Ghalia Lacroix), que dez anos antes havia fugido do palácio onde nasceu e foi criada, filha de uma mulher escravizada. Em flashback acompanha sua vida desde o nascimento, na mesma noite em que também veio ao mundo Sarra, a filha do príncipe senhor daquela moradia. As duas meninas cresceram juntas e se tornaram amigas. Por meio da amizade entre as duas e das ações de sua mãe, Khedija (Amel Hedhili), o filme descortina de maneira delicada relações de classe, de gênero e de cunho colonial.

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Khedija é uma mulher bonita, solicitada com frequência para dançar nas festas dos senhores. O olhar dos homens sobre seu corpo é fotografado com intensidade pela diretora, ao mesmo tempo em que mostra o desconforto das esposas desses. Muitas das senhoras, mulheres brancas de origem europeia, não escondem o desdém que nutrem por ela. Mas Khedija está presa a sua condição subalterna pela escravidão e repetidamente algum príncipe da casa lhe pede que vá a seu quarto à noite para servir-lhe chá. Em uma das cenas mais fortes do filme, chora em desespero exclamando que odeia o próprio corpo, esse que atrai atenção indesejada por parte dos homens.

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Alia apenas observa. Escondida atrás de paredes, colunas, cortinas, a menina cresce vendo tudo que a mãe suporta, ao mesmo tempo em que é alertada para ter cuidado quando se trata dos príncipes. O rosto de Hend Sabry, que interpreta a versão adolescente da personagem, é capturado em closes que revelam toda sua expressividade. Com catorze anos, vive sob constante ameaça de cunho sexual. Enquanto Sarra é prometida em casamento, mas ainda é tratada como criança, ela não tem perspectivas a não ser lidar com o tratamento predatório que a rodeia. De certa forma o filme marca a hereditariedade da servidão e da sexualização precoce das meninas pobres.

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A filmagem crua é compensada por uma direção de arte primorosa, que evidencia detalhes da cultura local, contrasta a riqueza dos arabescos e camas com dossel dos grandes salões e quartos com as esteiras e as paredes nuas da cozinha e mesmo os vestidos florais e batas brancas da jovem Alia com seu terno cinza, contido, hitchcockiano quando adulta. Os retratos de domesticidade na área de trabalho das empregadas domésticas são belos e carregados de um senso de sororidade. Na grande cozinha preparam-se as comidas que banquetearão o andar de cima; bordam-se toalhas; costuram-se roupas; ouvem-se notícias do mundo externo pelo rádio; e compartilham-se fofocas, risadas e lágrimas.

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Através dos dramas pessoais de sua protagonista, Moufida Tlatli desvela relações bem mais complexas do que uma primeiro olhar talvez capture. A personalidade musical de Alia é contraposta ao silêncio que atemoriza. É mulher, filha de mulher escravizada, tunisiana em uma terra ocupada por franceses e presa pelos muros de uma construção que traz consigo regras específicas para cada uma dessas categorias. Os Silêncios do Palácio é um filme que lida muito bem com suas próprias camadas e com as ações e emoções que compõe, mostrando-se um trabalho de estreia maduro, forte e imersivo.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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