
Ponto Oculto (Im toten Winkel, 2025)
Como a câmera conta uma história? Pode parecer uma reflexão bastante óbvia, pensando puramente na funcionalidade técnica do aparelho, de captar e registrar os acontecimentos encenados ou não. No entanto, Ayşe Polat propõe com Ponto Oculto mais uma análise de como o equipamento pode ser usado para manipular a linguagem. A primeira parte do longa, que é dividido em capítulos, serve como uma introdução, visto que os outros dois blocos conversam mais diretamente um com o outro. Neste início, a obra apresenta suas perspectivas e como se diferenciam, sem que ainda compreenda-se bem seus papeis narrativos. Essa relação vai se tornando mais clara conforme a história se desenrola, mas a segmentação acaba também por negligenciar núcleos interessantes levantados na primeira etapa.
Na introdução, uma equipe de documentaristas é apresentada, observada pela câmera do cinegrafista do grupo e por uma imagem distorcida que os espiona de longe, sem seu conhecimento. Neste capítulo, o registro documental é abordado de duas maneiras. Uma delas é a câmera rígida, fixa em um tripé, em que as cenas são controladas por um homem e pela diretora (Katja Bürkle), sempre ditando como as pessoas devem entrar, sair e se portar dentro do quadro. A outra é a que se destaca pelo uso didático do som, que informa à pessoa espectadora que o aparato cinematográfico foi removido de sua estrutura estável. O cinegrafista toma a filmagem em suas mãos, tornando a gravação parte de seu movimento corporal e de seu ponto de vista, algo mais dinâmico. Somando-se isso tudo a uma iluminação clara, em que o branco chega a estourar por vezes, e enquadramentos padronizados, Ponto Oculto ilustra a narrativa mais comum do documentário no cinema, até chegar à ruptura marcante do primeiro capítulo.
A investigação política que ocorre no começo, no vilarejo em que a senhora conta à equipe de filmagem sobre seu filho desaparecido, parece mais uma história de fundo a princípio. Isso ocorre principalmente quando a tensão do suspense se torna mais evidente, e Zafer (Ahmet Varlı) e sua família acabam por preencher toda a narrativa. Deste momento em diante, o exercício da câmera rígida e documental é substituído por duas perspectivas que ocupam o mesmo lugar e uma mais externa. Além do ponto de vista principal do longa, as câmeras escondidas são trabalhadas de forma que as mesmas visões apresentem tons distintos por como são usadas.
O conflito do passado, visto com curiosidade pelos cineastas e pouco aprofundado, é mais uma isca para o restante. Há um peso geral no longa sobre o histórico da Turquia, sobre como Curdos sofrem repressão no local e como o grupo de Zafer atua de forma violenta e ameaça pessoas como os cineastas da Alemanha, caso se envolvam demais em assuntos que não devem, assim como a tradutora (Aybi Era) e o advogado de direitos humanos que os auxilia no documentário. Porém, não é dado muito às claras como tudo se conecta, visto que com as mudanças e segmentação parece interessar mais a Ponto Oculto seu exercício de pontos de vista, diretamente ligado às câmeras de todos os tipos e à função do registro. A execução tem lá suas articulações mais travadas, mas acaba por se fechar com o impacto pretendido.
Melek (Çağla Yurga) existe dentro disso tudo como uma ponte entre o que pode ser visto e filmado, e o que somente seus olhos enxergam. Sua conexão com um homem de olhos verdes que mais ninguém vê é o que acaba por declarar tanto uma maior ligação da história com seu cunho político que atravessa o tempo, quanto a manipulação narrativa que acontece dentro da mesma perspectiva. Ocorre que as câmeras escondidas apresentam imagens que tanto se alinham ao suspense, à paranoia e à espionagem, que conduzem a trajetória do pai de Melek denunciando que há alguém mais o observando além da pessoa espectadora, quanto em diferentes momentos são cenas de horror sobrenatural.
Polat brinca com como o equipamento pode ser usado para contar a história dentro de diferentes gêneros, em diferentes tons, a depender de como é utilizado. Há um momento em que fica claro para os personagens que estão sendo vigiados, as cenas são coloridas, mas a textura ainda indica que a origem são as pequenas lentes ocultas, já em outros, principalmente no escuro da noite, a atmosfera é assustadora, silenciosa, sem cores e imprevisível.
Ainda existe a perspectiva fantasmagórica, apresentada desde a introdução, mas um pouco menos utilizada. Esta passa a ser sempre ligada a Melek e diferente das outras, principalmente pela distorção aplicada, deixa claro que não está conectada a algo físico, a um registro material. Porém acaba também por se mesclar em intenção às lentes de vigilância que captam os personagens, seja na casa de Zafer e sua família, ou no dispositivo de segurança aleatório que Melek fita próximo ao desfecho. É como se todas as câmeras de Ponto Oculto fossem possuídas por algo, um fantasma que não quer que sua memória seja enterrada, a paranoia de homens que acreditam que a captação digital de momentos é a maior garantia de suas vidas, ou a curiosidade estrangeira de contar a história de outros por sua própria perspectiva.
A memória, para Polat, parece resistir mais nas próprias pessoas do que nas imagens. Essas podem ser usadas para contar a história de diferentes formas, pelo horror ou pelo registro protocolar, pelo suspense ou como for, mas são os fantasmas que guardam a verdade do passado.



