
The Mastermind (2025)
Publicado originalmente em 02/10 na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir com o projeto, assine aqui.
Kelly Reichardt é uma cineasta que costuma compor filmes rigorosos e contidos. Mesmo aqueles que são mais doces, como Wendy e Lucy (2008) e First Cow – A Primeira Vaca da América (2019), manifestam um domínio na composição estética e até certa solenidade que suplanta a leveza das emoções. Não quer dizer que não sejam belos e que não emocionem. Mas é possível enxergar sua regência mesmo por trás do minimalismo. Por isso é interessante sentir como em The Mastermind Reichardt parece estar… soltinha. Não que não haja uma estética bem trabalhada, longe disso, e a paleta de cores controladamente criada por cores outonais mostra que as intencionalidades seguem rigorosas. Mas a trilha de jazzística de Rob Mazurek, aliada ao bailado em cena de James, protagonista interpretado por Josh O’Connor e ao humor que perpassa todo o filme, conferem à obra um tom fora do comum em sua filmografia.
A história se passa nos anos 70 e James é um marceneiro, casado com Terri (Alana Haim) e pai de duas crianças (Sterling Thompson e Jasper Thompson, ótimos, aliás), vivendo uma vida suburbana absolutamente banal. Uma volta da câmera pelo quarto do casal mostra móveis surrados, um abajur sem graça, uma cortina sem vida, curta demais para a janela. A vida não tem sido generosa para com a família.
Visitas ao museu público garantem lazer, cultura e entretenimento. Na sequência de abertura, Tommy, um dos meninos, fala sem parar, enquanto a mãe senta-se em um dos bancos e o guarda cochila. O pai aproxima-se de um dos expositores. Deixa a chave do carro cair, testando a profundidade do sono do vigia, inabalada. Um plano detalhe demonstra como ele consegue abrir sem maiores dificuldades a tranca da gaveta do móvel. Rapidamente embolsa uma pequena escultura, abarcada pela capa dos seus óculos. Uma época sem câmeras e sem sensores. Tempos mais simples. Toda essa abertura vende a imagem de James como um homem de movimentos suaves e precisos, que sabe o que faz. Um gênio do crime.
Tendo conseguido pegar essa pequena figura histórica, James tem uma ideia melhor: remover diversos quadros do museu com ele aberto, em plena luz do dia. Um detalhe que demonstra com humor a falta de traquejo dele com arte: utiliza cartões com reproduções das obras a serem roubadas em que estão anotados qual o lado de cima de cada uma. Para que o roubo aconteça, precisa de um time. Convida mais dois colegas para participar e um motorista. Esse último desiste em cima da hora e ele mesmo terá que dirigir na fuga. Aí está a graça de entender um gênero para subvertê-lo. O que se espera de um heist movie, um filme de assalto à banco, é uma equipe que, mesmo que tenha algo de cômico ou atrapalhado, tenha suas qualidades e seja afiada na hora de agir. Cada um é especializado em uma atividade e juntos coordenam um time perfeitamente azeitado, que burla o sistema. São os pequenos contra os grandes, geralmente bancos ou milionários.
Reichardt conhece o gênero e inverte sua lógica, se velando dele pelas sua próprias regras. James trabalha mais sozinho. James não quer roubar dos ricos, quer roubar obras de arte expostas num museu público. Ninguém tem habilidade nenhuma, em específico. O plano inteiro vai desmoronando a cada etapa, se revelando uma incrível sequência de erros. E o título, que poderia ser traduzido como Mentor, Condutor, não poderia ser mais irônico. Afinal, percebe-se que todo o charme à la Missão Impossível da primeira sequência não passou de um golpe de sorte e James nada mais é que um homem medíocre com sonhos de grandeza, um plano mal formulado e sequer um comprador para o fruto de seu roubo. O tipo de homem que precisa pedir dinheiro emprestado para a própria mãe para conseguir roubar um museu. Tudo acontece com grandes doses de humor físico e a movimentação corporal de Josh O’Connor torna-se central em cena.
O filme tem uma queda de ritmo quando o personagem precisa embarcar em uma fuga, desacolhido por amigos, de hotel em hotel. Mas apesar das perdas, ele ainda está elaborando algo que não deixa de ser interessante. Existe um comentário político muito claro correndo sob a superfície bem humorada. Diversas vezes a televisão aparece como plano de fundo, ligada em noticiários que mostram a Guerra do Vietnã. Em certo momento é noticiada a repressão das manifestações contra a guerra nas Universidades. Reichardt é professora no departamento de Cinema da Universidade de Bard desde 2006. Fico me perguntando como ela deve se sentir com as atuais políticas de desfinanciamento de programas acadêmicos estadunidenses em que ocorram manifestações pró-Palestina, entre outras. Além disso, a constante não renovação de visto de estudantes intercambista e o consequente esvaziamento de alguns programas. Deve ser um horror ser professor universitário hoje nos Estados Unidos e não se alinhar com as políticas governamentais (engenhosamente expressas na TV). Mas divago. James é uma figura tão patética ao final, sem ter um plano de fuga, literalmente seu ponto fraco é tentar fingir participar de uma manifestação política. Um homem comum e egoísta. “3/4 eu fiz pela minha família”. A performance política como aquilo que o trai.
O charme que Josh O’Connor emana nas imagens de divulgação bem como o irônico título do filme enganam: James é um homem insuportavelmente medíocre. É uma delícia assistir a The Mastermind e ver Kelly Reichardt se divertir, muito mais leve, enquanto subverte um gênero.



