Um Lindo Dia na Vizinhança
Talvez o maior obstáculo que Um Lindo Dia na Vizinhança precise superar no Brasil seja nosso enorme desconhecimento sobre o apresentador de programa infantil estadunidense Fred Rogers ou Mr. Rogers, figura central para o filme. Rogers ficou no ar quase ininterruptamente com Mister Rogers’ Neighborhood de 1968 a 2001, influenciando, portanto, gerações de crianças. Ele já havia sido objeto do documentário Won’t You Be My Neighbor? (2018), que ajuda a situar sua persona e seu impacto histórico e cultural para quem, como eu, não o conhecia anteriormente.
Em Um Lindo Dia na Vizinhança, o recorte é outro: Mr. Rogers (Tom Hanks) é um personagem auxiliar para a jornada de autoconhecimento e cura de Lloyd Vogel (Matthew Rhys), jornalista investigativo que precisa escrever um perfil do apresentador para a revista Esquire. A história aconteceu realmente em 1998 e o jornalista no qual Vogel é inspirado se chama Tom Junod. O artigo original, Can You Say… Hero? pode ser conferido aqui.
Entrevistar uma pessoa tão presente no imaginário popular pode ser uma tarefa ingrata, já que a imagem que se cria dela não necessariamente reflete a sua realidade. Mas logo Vogel, intrigado, percebe que Rogers não não é um personagem. Enquanto isso nós percebemos que o filme não é sobre Mr. Rogers e sim sobre como essa figura ajudou Vogel a olhar para si mesmo e seus problemas sob outras perspectivas. Rogers é esquivo e quando perguntado sobre questões pessoais, devolve-as ao jornalista. Dá pistas e afirma que “não há vida normal livre de sofrimento”. Ele mesmo carrega seus próprios fardos, mas não gosta de falar disso.
A forma como Rogers ensina as crianças a lidarem com a complexidade de seus sentimentos se volta a um adulto, mas não de maneira didática ou paternalista: é um diálogo que permite o próprio interlocutor destrinchar suas particularidades. Nesse sentido, o jeito bonachão de bom moço de Tom Hanks caiu como uma luva para representar a afabilidade e o tom acolhedor de Fred Rogers encarnado na ficção. Em determinado momento ele diz que a palavra mais bonita da Língua Americana de Sinais é amigo, sem explicar porque. Depois demonstra que a palavra, que consiste nos indicadores das duas mãos dobrados em C e enganchados um no outro. Mesmo em oposição, os dedos se conectam, o que de certa forma reflete a relação que se estabelece entre Vogel (e Junod) e Rogers.
Marielle Heller trabalha sua direção com mais confiança que em Poderia Me Perdoar?, seu filme anterior. Usando de elementos que flertam com o fantástico, ela amplia a escala da maquete presente no cenário do programa infantil, incorporando o mundo real nela e por vezes borrando o limite entre realidade e a fantasia, deslocando a história para um lugar que pode ser infância, mas pode também ser de onde o encantamento não se perdeu. O roteiro, de Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue, às vezes recorre ao sentimentalismo, mas não deixa de fazer sentido quando o filme trata da dificuldade de homens adultos expressarem sua emoção.
Como narrativa, Um Lindo Dia na Vizinhança funciona na medida em que sua inventividade renova o que poderia ser apenas mais um filme açucarado. Ele destoa do cinismo com o qual nos acostumamos, seja nas histórias que consumimos, seja na própria rotina da vida. Mas de forma singela, coloca em cheque relações e prioridades. Tudo que é mencionável é administrável.
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