[43ª Mostra de São Paulo] Papicha (2018)
Esta crítica faz parte da cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 17 e 30 de outubro na cidade.
Em 1992 começou a guerra civil na Argélia, que se intensificou no final da década e durou até 2002. O Grupo Islâmico Armado (GIA) foi o responsável por uma série de ações e atentados terroristas que visavam a derrubada do governo e a instauração de um que fosse teocrático. Papicha, que concorreu na Mostra Um Certo Olhar, em Cannes e é escrito e dirigido por Mounia Meddour, se passa em Argel justamente no ano de 1997, quando as ações se intensificaram.
Baseado em eventos reais, o filme cria uma amálgama desses relatos em torno de um grupo de jovens universitárias, centrado em Nedjema (Lyna Khoudri). Elas tentam levar uma vida normal, que inclui sair escondidas do campus onde fica seus dormitórios e dançar na cidade. Nedjema costura vestidos e vende-os para outras frequentadoras da balada. Apesar da falsa normalidade dessa rotina, ela não é sem sobressaltos, uma vez que carros são parados e revistados nas ruas e há a necessidade de pagar pelo silêncio do vigia da universidade.
Além de Nedjema, o grupo é composto por Wassila (Shirine Boutella), uma garota que se apaixona por um rapaz que considera universitárias mulheres sem moral, sem saber que ela mesma é uma estudante; e Samira (Amira Hilda Douaouda), jovem devota que vai se casar com um homem escolhido pelo irmão, mas, apaixonada por outro, descobre-se grávida.
Com a escalada da violência e do conservadorismo, espalham-se cartazes instruindo quais devem ser as roupas utilizadas pelas mulheres, com o argumento de que “sua imagem é valiosa para nós”. A universidade passa a ser um espaço de tensão, com o ensino em língua francesa (do colonizador), os hábitos e os conhecimentos compartilhados entre mulheres.
Enquanto a Argélia, na definição de um personagem, se torna uma grande sala de espera, onde todos querem ir embora, o filme destaca a intimidade, a união, o cuidado e a delicadeza com que as mulheres ajudam umas às outras. Como ele é composto por um apanhado de diversas histórias, às vezes parece que a concentração de eventos danosos em torno das protagonistas é excessivo, mas isso é compensado pela força colocada nessas relações.
A irmã de Nedjema, Linda, um jornalista, é assassinada. A violência não é retratada, mas filmada sem profundidade de campo, com a reação da protagonista em foco no primeiro plano explicitando o choque de testemunhar. Nedjema quer lidar com o luto por meio de sua costura e desafiar os opressores com um desfile de moda, em que todas pudessem desfrutar do próprio corpo e se divertir. Ela usa a técnica do moulage e haiks como base para as peças. Costura é arte, resistência, expressão e cultura. A máquina de costura é uma ferramenta de construção de autonomia. A fotografia destaca a beleza dos grandes cortes de tecidos circundando as personagens, presos nas paredes, balouçando ao vento nos varais. Em tempos em que o conservadorismo avança, a truculência predomina e temos que lidar com nossa própria versão de um uma proto-teocracia, Papicha emociona, indigna, mas também inspira.
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