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[47ª Mostra de São Paulo] Mulher de… (2023)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


É o que diz aquele velho ditado: de boas intenções o inferno está cheio. Mulher de (Woman of…, 2023), dirigido pela dupla de cineastas poloneses Michał Englert e Małgorzata Szumowska, é um filme que já parece surgir de uma proposta antiquada. A história atravessa a vida de uma mulher transgênero ao longo de quarenta anos, desde a Polônia soviética até o ano de 2023. Em sua juventude ela é interpretada pelo ator Mateusz Wieclawek e com a passagem do tempo passa a ser encarnada pela atriz Malgorzata Hajewska. A narrativa pretende-se simpática à trajetória da personagem, ao mesmo tempo em que reforça situações estereotipadas e se utiliza de fórmulas antigas.

Quando Aniela conhece Iza, sua futura esposa, é curioso como em um momento cômico, pendurando-se em uma estrutura de palco para amarrar uma faixa, ela quebra, sem querer, o pênis de um anjo. A personagem amada ganha de presente um pequeno falo de pedra que não mais está no corpo a que pertencia. Essa emasculação simbólica é criada para fins de humor e assim, Iza, ainda que sem saber, recebe em suas mãos não um, mas dois pênis que estão deslocados de seus corpos. Esse é o nível de sutileza da obra.

A direção de arte constrói uma época dourada, repleta de cores fortes e banhada de luz cálida, bem diferente do retrato que o cinema costuma criar da União Soviética. A juventude de Aniela é marcada por ritos de masculinidade tradicional, do rugby à parentalidade. Mas ela começa a questionar seu lugar entre performatividades de gênero rígidas. Com o fim da União Soviética, começa a experimentar, entre urges e purges, com o crossdressing, escondida. A fotografia se torna soturna e cinzenta, como se a personagem estivesse confusa e em sofrimento com suas experiências. Os cartazes do cinema chamam para os filmes A Dupla Vida de Véronique e Uma Linda Mulher, novamente dando pistas sobre sua trajetória.

E aí os estereótipos se empilham. O ator cisgênero que a interpreta, com seus cabelos longos, caindo em franja sobre os olhos, é todo maneirismos, com movimentos languidos e trejeitos (provavelmente do que ele entende como sendo mulher ou como sendo expressão de mulheridade). Ela passa por todo o calvário possível (e a escolha do termo religioso é proposital, porque é perceptível como a vivência católica influencia não só as experiências pessoais, como as tradições e leis do país).

Aniela, para ser aceita em sua identidade feminina, precisa se divorciar de Iza, porque o casamento entre pessoas do mesmo gênero não é permitido na Polônia. Depois disso, é necessário processar a sua família, com o argumento de a terem concebido com o corpo errado. A noção de “corpo errado” é acionada constantemente, em um relato de disforia marcada, confirmado até pelos médicos que a atendem (“você é normal, todo ser humano começa como mulher na concepção, com cromossomos X”). É sabido que a patologização estratégica pode fazer parte de diversas experiências transgêneros, uma vez que a cisnorma só atende demandas no que diz respeito à saúde e à corporeidade trans quando essa se adequa a discursos psiquiátricos dentro de certas expectativas do que significa ser trans.

Além disso, Aniela é confrontada com uma visão masculina de que é ser polonês: a ideia de pátria como o lugar permeado por homens valentes e bigodudos, que desde a infância cantam sobre a terra que se ganha por meio da espada. Em sua trajetória para ser aceita, é tratada como fetichista, ou esquizofrênica, é violentada uma vez após a outra pelo uso de nome e tratamentos no masculino, engaja em sexo humilhante porque diversas vezes a narrativa (assim como alguns personagens) parece confundir identidade de gênero e orientação sexual e isso é expresso na sua própria confusão.

Em uma cena não só constrangedora, como violenta, Aniela, que tomava banho sozinha em um banheiro coletivo, não percebe a chegada de mulheres jovens (freiras!), que a rodeiam, enroladas em toalhas. Quando ela se vira, elas, em choque, olham para seu pênis. O corpo cisgênero (e religioso) nunca é exibido em sua nudez, como se não fosse necessário, afinal, sabe-se o que existe debaixo daquelas toalhas. O corpo transgênero é revelado à guisa de choque, com direito a um zoom trêmulo sobre o pênis e contraplanos que mostram a reação espantada das demais mulheres, como se aquele corpo fosse, conforme a linguagem visual utilizada, monstruoso.

O fato de a atriz principal ser uma mulher cisgênero ao longo de boa parte da vida de Aniela retratada cria situações não intencionalmente cômicas, como o uso do obviamente falso bigode colado ao seu rosto. Além disso é necessário ocultar o corpo dela para que seja coerente com a sua trajetória. Dessa forma, suas roupas são desproporcionalmente largas e é possível perceber o uso de binder em diversas cenas.

E é aí que talvez o aspecto do “bem intencionado”, que menciono no começo da crítica, seja tão complicado. Os diretores tentam criar uma narrativa trans, mas não há pessoas trans com protagonismo no projeto. A história mira em nuance e sensibilidade e acaba acertando em estereótipo, choque e acolhida pela pena. Aniela não é criada como uma pessoa para se ter empatia, mas para que se lamente a tristeza de sua trajetória. Sabemos que narrativas com personagens protagonistas transgênero no cinema têm um histórico no mínimo complicado: foram utilizadas, ao longo das décadas, como fonte de humor ou, ainda pior, como psicopatas a serem temidas. A discussão em torno da necessidade de atrizes e atores transgênero parece que deveria ter sido superada (mas pelo visto isso está longe de acontecer). O debate a respeito de filmes que focam no sofrimento LGBT, especialmente para tentar emocionar um público cishétero, parece algo que ficou na década passada (e novamente, pelo visto não). Nesse sentido, Mulher de… é uma proposta de cinema que, não só utiliza da linguagem audiovisual de maneira estigmatizante, como chega atrasado nas discussões das últimas décadas e por isso já nasce desalinhado como o tempo presente no que diz respeito a narrativas queer.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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