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[47ª Mostra de São Paulo] Razões Africanas

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


Com o documentário Razões Africanas (2023), o diretor Jefferson Mello explora as raízes musicais africanas de três ritmos musicais americanos: o blues criado nos Estados Unidos, a rumba de Cuba e o jongo, praticado principalmente na região sudeste do Brasil. Em uma apresentação antes de exibição, ele descreveu a obra como um documentário de guerrilha: foram mais de cinco anos (com uma pandemia no meio) filmando em seis países diferentes.

No primeiro país, o filme foca em Terry “Harmonica” Bean, um músico que toca violão e gaita de boca. Seus relatos explicitam o tensionamento do racismo, a presença do Ku Klux Klan, o histórico de linchamentos e a estigmatização de música de origem afro-americana como sendo anti-cristã, bem como sua sobrevivência e perpetuação dentro de igrejas e a influência no rock, country e rap.

Em Cuba, a principal interlocutora foi Eva Despaigne, criadora do grupo Obiní Batá. Ela explica que tradicionalmente apenas homens poderiam tocar o tipo de tambor chamado do batá, mas ela criou o grupo, composto por mulheres, que iniciou a prática. O estilo musical envolve não só a percussão, mas também canto e dança. Apesar disso, afirma que ainda existe machismo no que diz respeito a músicas populares e a músicas tradicionais no país.

O Brasil, por sua vez, é representado por Lazir Sinval, cantora e compositora no Jongo da Serrinha, no Rio de Janeiro. O ritmo, criado como forma de resistência por pessoas escravizadas, é caracterizado, assim como a rumba, pela combinação entre música, canto e dança. O filme apresenta uma certa genealogia do musicar do local, mostrando as trocas realizadas com outros grupos de jongo e as atividades, especialmente com crianças, produzidas visando a manutenção das tradições.

Além do foco nos três países principais, o documentarista se desloca para outros três na África, que influenciaram os ritmos apresentados. De Mali é possível é possível reconhecer os instrumentos de corda de som suave e melancólico que deram origem ao blues. Do Congo, a variedade de instrumentos de percussão, a relação sagrada que se estabelece com eles, e sua ligação com a rumba. Por fim, em Angola, não só a percussão é presente, como a dança realizada com saias de tecidos elaborados, que dialoga com as saias coloridas usadas no jongo brasileiro.

Algumas decisões estéticas do filme podem causar algum estranhamento. As práticas africanas, cubanas e brasileiras são registradas em cores, e as estadunidenses fotografadas em preto e branco, por exemplo. Além disso, os deslocamentos pelos vários países da África são retratados em mapas esquematizados, que indicam distâncias e tempos de deslocamento. Mas nunca é explicado visualmente onde fica a Serrinha no Rio Janeiro (ou mesmo o Rio de Janeiro no Brasil), ou a região do Mississipi nos Estados ou Matanzas em Cuba. É como se o filme presumisse que as pessoas espectadoras devessem saber de antemão a localização desses outros lugares.

Mas, a escolha de pessoas interlocutoras foi acertada e as personagens rendem boas histórias e muita informação sobre cultura, hábitos, tradições, transgressões e ressignificações. É especialmente interessante quando tomamos as questões de gênero e percebemos hoje a forte presença de mulheres tanto no Brasil como em Cuba. Destaca-se, também, a entrevista concedida por Ynaê Lopes dos Santos, professora da UFF, que traz informações e contextos históricos para diversos dos temas abordados no Brasil.

Por fim, o filme se desenrola com calma e tem uma montagem que permite a escuta em detalhes, deixando as músicas tocarem diversas vezes em sua completude. Ele possibilita que se respire música e se mergulhe em seus cenários e conjunturas. Razões Africanas é um documentário que entrelaça música e ancestralidade, mostrando conexões intercontinentais entre diferentes ritmos.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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