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[47ª Mostra de São Paulo] Uma Vila Sem Filhos (2022)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


Escrito e dirigido por Reza Jamali, Uma Vila Sem Filhos (A Childless Village, 2022) é o segundo longa-metragem do diretor. A narrativa se passa em uma vila repleta de cabras e ovelhas, incrustrada entre belas montanhas nevadas no Irã. O protagonista, um cineasta chamado Kazem, tenta voltar ao tema de um filme seu que se perdeu no passado. Nesse lugar, os homens repetidamente se divorciam de suas esposas e casam-se com outras, das quais terminam por se divorciar novamente. Isso porque não nascem crianças. Vinte anos antes Kazem havia feito um documentário tratando a questão da infertilidade, culpando as mulheres pelo fenômeno. Elas o perseguiram e destruíram o filme.

Passadas essas décadas, muitas delas haviam se casado novamente como homens na cidade e tiveram filhos depois disso. Kazem desconfia, então, que se trata de uma questão de saúde dos homens. Resolve investigar a situação com ajuda de uma médica, entrevistar novamente moradores do lugar e realizar um novo documentário. Conta com a ajuda de um captador de som e um senhor bem relacionado, que tem parentesco com diversas pessoas e poderia acioná-las, além de ter interesse em aprender o ofício de direção de cinema.

O filme trabalha com camadas de metalinguagem, informando o próprio fazer fílmico. O diretor dentro de cena se agacha compondo quadros, usando as mãos como uma tela. O técnico de som se esmera para captar instrumentos musicais, grilos, água correndo, vento e outros elementos (e é impossível não prestar atenção no som no restante do filme). A composição dos personagens brinca com sua posição em cena, colocando entrevistador, captador, microfone e por vezes até mesmo diretor diante da câmera, ao invés de escondê-los. Lentes são limpas, imagens desfocadas são focadas, narrações em voz over são acrescentadas (no filme dentro do filme e no filme propriamente dito) com o mesmo esmero com que o assistente joga folhas em uma calçada para “preencher os espaços vazios”, preocupado com a mise-en-scène. Tudo isso transcorre com muito humor e em paralelo com as ações principais.

Existe um senso de familiaridade na forma como as pessoas são retratadas. Os interiores pequenos, muitas vezes escuros, mas também aconchegantes e recobertos de tapetes funcionam muitas vezes para reenquadrá-las contra batentes e janelas. As roupas antigas (com exceção da médica), vestidas em camadas, bem como o chá e o narguilé dão conta de demonstrar o frio, que por sua vez contrasta com a paisagem fértil, repleta de flores no exterior exuberante.

E apesar de toda a beleza e sagacidade com que as imagens são trabalhadas, o filme se destaca em especial é nas interações humanas. A constatação da tragédia masculina da infertilidade coletiva é balanceada pelo direito das mulheres de se defenderem e contarem suas histórias, ao contrário do que aconteceu no passado. As interações entre atores revelam pequenos gestos, maneirismos, risadas e os detalhes dessas vidas em lugar onde todos se conhecem e a rotina, na ausência de herdeiros, se prende ao passado, pois o futuro teima em não chegar (como o telefone que pouco funciona). Uma Vila Sem Filhos é uma cinema que fala lindamente sobre fazer cinema. Mas cinema que seja singelo, bem-humorado e humano.

Imagem: Divulgação
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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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