[49ª Mostra de São Paulo] As Vitrines
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
Um casal carregando pastas ajeita as roupas de seu filho Pedro (Gael Nórdio), de 12 anos, antes de tentar passar por um portão de entrada de uma grande casa. Gritaria. Dois militares ladeiam o dito portão. Tiros são disparados para o alto. O homem acelera, de mãos dadas com o menino, e adentra o terreno. A mãe é barrada, não consegue entrar, e sua bolsa branca fica caída na calçada em frente à entrada. Um aglomerado de pessoas recepciona os dois recém chegados enquanto a mulher do lado de fora corre, se afastando. O ano é 1973. A ditadura militar se instala no Chile e os militantes de esquerda estrangeiros buscam abrigo nas embaixadas em Santiago, onde vão aguardar seus vistos serem liberados para poder voltar a seus países de origem. Essa, em específico, é a Embaixada da Argentina.
Escrito e dirigido por Flávia Castro (de Deslembro), As Vitrines rememora esses momentos a partir do ponto de vista das crianças. Pedro ocupa na narrativa uma posição a princípio antagônica: ele não queria estar ali, preferia ir em busca da mãe. O estado quase catatônico do pai pouco comunicativo não ajuda a aquietar a criança, que ainda precisa entender que aquele espaço tem regras e quais são elas. O funcionário fardado enquadrado com a cabeça fora de quadro declamando que é preciso obedecê-las é cartunesco na medida certa para a percepção infantil sobre aquele novo espaço.
As regras existem para evitar o caos em um lugar que era um ambiente de trabalho e viu-se transformado em alojamento. Mulheres e crianças dormem para um lado, homens para outro. Comida precisa ser preparada. Banhos tomados (de forma cronometrada, ouviram brasileiros?). Limpeza precisa ser feita. Baldes precisam ser enchidos. Espaços são setorizados: existem os lugares onde se pode e não se pode entrar e o que era uma espécie de palacete de um governo federal é subdividido uma áreas de uso coletivo: para estudos, jogos de xadrez, dormir, e o grande gramado onde de tempos em tempos alguém passa recolhendo os brinquedos das crianças. A direção de arte de Ana Paula Cardoso constrói um mundo inteiro de convivências e comensalidade em uma só edificação. Bandeiras de ambas as nações, os enormes quadros cobertos e amarrados no canto, as cordas demarcando os limites das passagens.
A contrapartida a Pedro é Ana (Helena O’Donnell), de 11 anos, que já está com seus pais há algum tempo no lugar. Quando o filme começa, um letreiro informa que uma brincadeira de vitrine consiste em juntar pequenos objetos preciosos, cavar um buraquinho no chão, dispô-los de forma ordenada de cobri-los com um caco de vidro, de preferência verde ou azul, para um efeito mais bonito. São essas pequenas vitrines, com sementes, fitinhas, soldadinhos de plástico e outros elementos que a menina cria no jardim. Pedro tem um jovem dureza que amolece com o fazer bonecos de sombra, o montar vitrines, o construir tendas e e o usufruir doces trocados por cacarecos.
Não é que o mundo lá fora deixe de existir. E esse é um dos aspectos interessantes do filme: ao ser narrado sob a perspectiva das crianças, a política alcança até onde elas alcança, mas é o suficiente para termos vislumbres de brutalidade batendo à porta (e elas sabem disso). O mundo lá fora continua existindo (e eventualmente conspurcando o mundo de dentro), mas para as crianças ainda há um espaço de infância a se preservar e Ana faz questão de manter suas vitrines, literais e figuradas.
A princípio me peguei desconfiada desse retrato do menino tão racional, apegado à política e ao xadrez, e da menina tão artista, que gosta das coisas belas e não presta atenção nessas coisas. É uma divisão de gênero bastante marcada, provavelmente não intencional, mas que se equilibra com a chegada da pequena Lola, de 7 anos. O elenco infantil do filme é simplesmente encantador, dando conta de imensa carga dramática, construindo seus personagens com uma profundidade que impressiona, especialmente pelo domínio dos dois idiomas envolvidos.
O fato é que, afinal, a personagem de Ana é fascinante e não à toa o próprio título do filme é conectado a ela. Ela é capaz de criar beleza e ludicidade em meio a feiura. Nesse sentido é bonito como o olhar para esse passado não tem os tons terrosos ou outonais que costumam acompanhar reconstituições desse período. O figurino, também de Ana Paula Cardoso, sob fotografia de Heloisa Passos, é repleto de cores primárias e composições harmoniosas envolvendo cores complementares, criando uma imagem muito mais alegre do que o que se convenciona para essa época. (Algo como a rotina tão musical)
Ao descortinar uma ditadura militar por meio da subjetividade das crianças, é inevitável que debates políticos aprofundados fiquem de fora do filme. Mas não creio que seja necessário esse tipo de abordagem aqui. Quando sobem os créditos e vemos a foto da cineasta Flavia Castro e outras crianças, elas mesmas em 1973 na embaixada argentina em Santiago é impossível não se emocionar. Porque a vida não é ficção e toda criança vai brincar e fantasiar nas situações mais adversas, mesmo que entenda o que está acontecendo. As Vitrines é um lindo e singelo registro essa pureza em meio ao horror.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha, Nayara Lopes.

