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[49ª Mostra de São Paulo] Cyclone

Esse texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


Em uma manhã de julho em 1918, São Paulo amanheceu coberta de gelo. A temperatura abaixo de zero e a geada criaram uma lenda, os moradores da grande capital pensaram que havia nevado. Nesse mesmo período, Oswald de Andrade se relacionava com uma adolescente de apenas 18 anos, Daisy Pontes (Maria de Lourdes Castro Pontes ou Miss Cyclone). Ele, muito mais velho, já era conhecido e se tornou um nome histórico no Brasil, figura-chave do modernismo. Ela fez parte do mesmo núcleo, conheceu as mesmas pessoas e discutiu de igual para igual com eles sobre política, literatura e seus pensamentos sobre o futuro, era uma mente rebelde e pensante em um momento em que os artistas fervilhavam. No entanto, seu nome não chegou às apostilas, não foi estampado aos montes por aí e não se tornou familiar para a grande maioria dos brasileiros, pelo menos não até agora.

Com o roteiro de Rita Piffer inspirado na vida de Daisy, Flávia Castro elabora junto à atriz Luíza Mariani uma obra anacrônica sobre uma mulher apagada pela história e que chegou a um fim trágico cedo demais, por feitos dos homens que passaram em sua vida. Cyclone constrói a personagem por meio de uma atuação potente, reivindicando o nome de Daisy, seu lugar na memória e no tempo, mas jamais a retratando como uma vítima. Mariani dá vida a uma Miss Cyclone mais velha, que diz estar próxima da idade de falecimento da mãe – que morreu de cirrose aos 37 anos -, dramaturga e parceira de trabalho do famoso Heitor Gamba (Eduardo Moscovis), sem nunca ser creditada pelo amante, e que enfrenta tudo e todos com sua postura sempre muito firme. Quando consegue uma bolsa para estudar em Paris, contrariando as expectativas e preconceitos, encontra todas as barreiras possíveis atreladas ao seu gênero para realizar seu sonho.

O período em que se passa Cyclone é o mesmo em que Daisy viveu e se relacionou com Oswald, entre 1918 e 1919. O longa, porém, brinca com o tempo a partir das problemáticas e questões que não se fixam entre passado, presente e futuro, necessariamente. Há uma maleabilidade nesse retrato temporal, a protagonista é uma mulher solteira e sem filhos, perto dos 35 anos, que quer estudar para fazer teatro em Paris. Quando descobre estar grávida do amante casado, escuta do médico que pode ser sua última chance, o que remete mais aos tempos atuais do que ao início do século XX. É possível que uma mulher desta idade, e com essa bagagem, nunca conseguisse pensar em estudar ou fazer planos para uma vida solo no futuro, nesta época. Já hoje, mulheres com mais de 30 anos são constantemente questionadas sobre a maternidade, ainda mais se resolvem focar em suas carreiras.

É assim que Cyclone vai elaborando um retrato tanto sobre essa figura forte, ressignificada dentro do filme, quanto sobre ser mulher em qualquer momento. Provavelmente a moda atual, em que peças de alfaiataria se tornaram queridinhas dos armários femininos, ajuda muito a ter essa noção de que o 1919 da obra e o 2025 de seu lançamento não estão tão distantes. A fotografia traz um aspecto e textura nas cores e iluminação que até lembra o passado, embora Daisy seja belamente retirada do preto e branco mais óbvio nos primeiros minutos de filme, mas a firmeza da dramaturga e os obstáculos que encontra são atemporais, até porque estamos falando de um Brasil que ainda coloca vidas em risco por falta de direitos reprodutivos. Então se parece absurdo que a protagonista não pode viajar para fora do país sem autorização do pai ou do marido, já não soa tão estranha toda a conversa no consultório, com a amiga (Karine Teles) que indica o caminho para o aborto clandestino ou cada atitude machista no caminho.

O fato de Daisy não ser creditada nos trabalhos que faz com Gamba é revoltante, mas também pouco distante de um momento recente. O que é interessante no filme de Flávia Castro, sobre este ponto, é como o apelido Cyclone existe tanto como uma expressão da potência daquela mulher e artista, quanto uma máscara. O pseudônimo retirado da vida real é substantivo masculino, usado pela personagem como forma de ocultar um nome feminino dos créditos, pois, segundo sua crença – e afirmado com certeza por todos os outros personagens -, ninguém assistiria a uma peça escrita por uma mulher. Essa é a maior questão para a Daisy criada pelas mulheres que a escreveram, dirigiram e interpretaram em Cyclone, uma pessoa que quer reivindicar seu nome. 

O final da Cyclone da ficção é encontrar o mesmo destino de Maria de Lourdes na geada de São Paulo, mas sua trajetória é de trazer força e inspiração, de ser peça principal de uma obra-manifesto que se recusa a retratar uma vítima, ou dar foco a o que um homem tirou dela. Cyclone destaca os obstáculos, preconceitos e violências, mas sua protagonista segue firme, olha nos olhos, bate de frente, conta sua história. Flávia Castro coloca com este filme o nome de Daisy impresso em tela e na mente de todos que assistirem, tornando sua figura viva e, finalmente, com seu lugar na memória.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha.

Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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