[49ª Mostra de São Paulo] Deus Não Vai Ajudar
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
No começo de Deus Não Vai Ajudar (God Will Not Help), escrito e dirigido por Hana Jušić, uma mulher vestindo luto pesado chega a uma cabana. É começo do século 20. Seu vestido longo até o chão, com saia ampla, pequenos botões pregados na frente de três em três, amarração nas costas, rendas nos ombros, acompanhados de botinas pretas e coque severo prendendo os cabelos negros dão pistas de uma condição financeira que contrasta com o lugar de chegada. Ao seu redor há muros de pedra e um casebre. Seu nome é Teresa (Manuela Martelli) e se apresenta, em espanhol, como sendo viúva de Marko, um integrante da família local. Ela não poderia contrastar mais com Milena (Ana Marija Veselčić), a outra única pessoa do local, com os cabelos loiros presos em duas tranças, as saias apenas passando dos joelhos, as meias grossas de lã, a blusa de tecido grosseiro.
Marko, croata, emigrara para o Chile em busca de ouro e escrevera para os irmãos prometendo riquezas, assim como levar o mais novo para se juntar a ele. E agora chegava uma viúva, sem filhos, às terras deles. As duas mulheres não compreendem o idioma uma da outra, mas se comunicam por meio de uma uma bíblia ilustrada, mostrando os desenhos e frisando o significado das palavras. Não à toa a dupla foi premiada como melhor atuação no Festival de Locarno: elas se esmeram nessa troca cheia de sentidos. É verão e os homens estão no alto das montanhas com as ovelhas para que elas possam ser pastoreadas. E assim elas conseguem passar um longo período juntas, e Teresa amplia seu vocabulário.
Os conflitos se estabelecem quando elas sobem para as montanhas. A presença de Teresa perturba a dinâmica familiar estabelecida: lá em cima há mais três homens adultos, Ilija, Stanko e Djuka, um jovem, Nikola, a esposa de Ilija e as crianças. A questão é que uma viúva gera desconfianças. Seria mesmo? E se for, implica em terras e ovelhas a serem divididas, a não ser que ela se case com um dos irmãos e essas terras permaneçam. Suas roupas boas também causam estranhamento: cadê o dinheiro?
Os planos abertos dão uma dimensão da paisagem e da difícil condição da natureza no lugar onde a família mora. Mas não é só a natureza. São as crenças e os costumes que prontamente estranham a autonomia com que Teresa chegou a esse fim de mundo e agora parece querer se desvencilhar do que é esperado dela. E logo ela é categorizada como uma mulher não pertencente. Teresa desafia as convenções e parece incentivar Milena a desafiá-las também. Mulheres que não obedecem é o que temem os homens dali.
Trata-se de uma narrativa lenta, que toma seu tempo para contar os acontecimentos, o preenche com trocas de palavras nos idiomas e tentativas de comunicação e sinceramente sua duração voou. O vento que açoita o vestido e as belas paisagens criam um mundo em que o olhar penetrante de Manuela Martelli parece sempre desafiar seus interlocutores. As duas atuações femininas tão marcantes nos papéis principais sustentam um universo de conflitos em torno delas que mostram séculos de uma sociedade imutável. Deus Não Vai Ajudar é um filme estranho, enigmático, atmosférico, mas tão, tão bonito de olhar.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

