
[49ª Mostra de São Paulo] Frankenstein (2025)
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
Todos os homens odeiam os desgraçados; como devo ser odiado, eu que sou a mais infeliz entre as criaturas vivas! Ainda assim, tu, meu criador, detestas e rejeitas a mim, tua criatura, a quem estás preso por amarras que apenas a aniquilação de um de nós pode dissolver. (…) Lembra-te que sou tua criatura; deveria ser teu Adão, porém sou mais como o anjo caído, a quem tu afastaste da alegria sem ter cometido mal nenhum. Por outro lado vejo prazer, do qual apenas eu sou irrevogavelmente excluído. Eu era benevolente e bom; a tristeza me tornou um demônio. Torna-me feliz, e serei virtuoso novamente.
(SHELLEY, 2017, p. 108-109)
Quando foi anunciado que Guillermo del Toro dirigiria Frankenstein, clássico de Mary Shelley, pensei que ele seria o cineasta perfeito para a empreitada. Um diretor com obras de estética tão marcante, com forte apelo gótico e apreciação por criaturas fantásticas como ele poderia ser o responsável por uma versão da obra que finalmente fizesse jus ao livro, libertando a criatura que a protagoniza dos rótulos de vilã e de monstro. E não posso dizer que ele não tenha feito isso, mas por outro lado, abriu mão de muito da essência de Shelley, o que não deixa de ser, também, lamentável, em se tratando de uma autora que passou a vida (e o pós) lutando pela própria autoria.
Foi no ano de 1817, aos 19 anos de idade, que ela escreveu Frankenstein: ou O Moderno Prometeu. O livro é considerado a primeira obra de ficção científica contemporânea e foi escrita em uma noite de aposta entre ela, seu companheiro Percy Shelley, e seus amigos Lord Byron e John Polidori, em que cada um deveria redigir uma história de fantasmas. Publicado no ano seguinte sob pseudônimo, acreditou-se que a obra seria de Percy, poeta que na época era mais conhecido, até ela reclamar a autoria para si.
Shelley foi criada em um ambiente de efervescência intelectual: seu pai, William Godwin, era jornalista e editor e sua mãe, Mary Wollstonecraft, é uma filósofa feminista que escreveu o livro Reivindicação dos Direitos da Mulher. A mãe faleceu em virtude de complicações relacionadas ao parto de Mary, o que, se especula, em parte inspirou a escrita de Frankenstein, com suas noções de gênero sobre nascimento e o construir uma vida. “As narrativas fantásticas apresentam esses homens saciando uma espécie de inveja da capacidade uterina de criação, em busca de formas de criar vida para alcançar um poder divino” (WITTMANN, 2023, p. 68).

De fato, em algum momento do livro, o protagonista, Victor Frankenstein, no filme vivido em sua fase adulta por Oscar Isaac, movido pelo ego, pelo desafio, resolve construir um ser humano vivo. No filme, Del Toro cria toda uma nova configuração familiar para Victor. Ele cresce sob forte repressão paterna, pai esse de quem herdou o nome. A mãe (interpretada por Mia Goth) é uma uma mulher de posses, que garante que a nobreza falida da família se sustente por mais uma geração. Ao contrário do livro, onde o casamento se dá na pobreza e por amor, aqui é um casamento arranjado e por interesse, sem nenhum afeto. O pai de Victor está sempre viajando e ele diz que sua mãe é dele o resto do tempo. Que imagem insólita é essa mulher inteiramente trajada em vermelho, com véu vermelho voando ao vento na escadaria em frente à casa, esperando o marido.
Este, quando vem, passa seu tempo ensinando o ofício da medicina ao pequeno Victor, que reza ao anjo da morte. Quando a mãe, em gestação avançada, sangra e o pai, o mais renomado de todos os médicos, não consegue salvá-la, o menino se revolta e questiona se teria sido proposital, pela falta de amor. Nasceu seu irmão mais novo, William, que adulto será interpretado por Felix Kammerer e no livro é apenas uma criança. Victor jura que um dia seria capaz de burlar a morte. Toda essa relação edipiana e o desafio à figura paterna e à própria morte como motivadores não existem no livro e rendem um longo prólogo no filme.
Espera-se que toda adaptação cinematográfica tome liberdade com o material original. Primeiro porque, obviamente, são mídias diferentes e as narrativas precisam funcionar em seus respectivos formatos. Segundo, até mesmo por contenção de tempo: um filme precisa ser muito mais econômico em termos de tempo disponível para contar uma história do que um livro. Então certamente mudanças acontecerão. Na expectativa de fidelidade absoluta, é melhor reler o livro. Minhas críticas não são de modo algum nesse sentido: uma das melhores adaptações de Jane Austen, em minha opinião, é As Patricinhas de Beverly Hills (1995), que retrata com perfeição o espírito ao mesmo tempo mimado e ingênuo de Emma, a protagonista. Da mesma forma, O Morro dos Ventos Uivantes (2011) de Andrea Arnold extirpa metade do livro mas capta muito bem sua atmosfera. Então quando discuto uma boa adaptação, para além de pensar na transposição literal do conteúdo do livro, penso em uma transmissão subjetiva da sensação da leitura.
A questão é que Del Toro acrescenta personagens e modifica motivações ao ponto que a relação central da história, que é a de Victor com sua criatura, deixa de fazer sentido. William anuncia que vai se casar com Elizabeth (também interpretada por Mia Goth), sobrinha de um primo, Harlander (Christoph Waltz, inventado para o filme) . Na trama original, Elizabeth é criada desde pequena com Victor e os dois se chamam de primos, embora não tenham nenhum parentesco. Constrói-se uma relação de proximidade e afeto que é essencial para a conexão entre os dois. São os dois que decidem se casar, e não ela e William.
Aqui Elizabeth é usada como contraponto a Victor: ela questiona suas ações e aponta o dedo diante de seus erros. Nós vemos ele primeiro como um gênio: sim, ele é capaz de usar a ciência experimental do século XIX (real ou não) para criar maravilhamentos bizarros diante de outros. Mas a partir daí dá um passo em frente e realmente utiliza partes de cadáveres para trazer um corpo humano de volta à vida. Tema comum na literatura e no cinema fantástico, homens cientistas buscam formas de criar formas de vida humanas viáveis. Esse tema não começou com Mary Shelley, mas certamente se tornou marcante com essa obra:
O certo é que, em um dado momento, o crescimento da capacidade da máquina de simular e emular o desempenho humano é combinada com as mudanças ocorridas no estado do corpo e deu origem, no imaginário, ao surgimento de um “homem artificial” figurado e nomeado de forma variada, que assumiu as funções de um “duplo” coletivo de homem, maléfico e ruinoso, no qual, como em outros “duplos” dos contos de fadas e da literatura, se encarna um retorno do reprimido. Ao duplo “humano” da literatura fantástica, o duplo “artificial” da ficção científica (usamos o termo em sentido amplo, incluindo Frankenstein e R.U.R.) acrescenta um caráter de ambiguidade, estando a meio caminho entre a máquina e o homem
(CARONIA, 2008, p. 46-47, tradução minha).

É bonito como o filme não foge da feiura do processo de criação, com seus corpos expostos, sangue pelo chão, moscas abundantes, ainda que sob iluminação solar. E a ciência e a arte da época se fundem possibilitando que todo o processo seja registrado em fotografias, como uma curiosidade, a possibilidade fascinante de reter imagens.
O trabalho manual de serrar e costurar não é um trabalho preciso e científico: é a obra de um artesão que desvela seu grotesco sob o olhar espantado de Medusa. A criatura renasce, ressuscitada, evocando a imagem de Jesus crucificado, envolta em faixas de mortalhas que vão ser seus trajes. Frágil, como uma criança recém nascida, balbuciante, aprendendo o mundo. Jacob Elordi, que a interpreta, confere a vulnerabilidade ideal, a fragilidade incerta de alguém que acabou de chegar ao mundo e dele nada sabe.
Victor, sem misericórdia, acorrenta seu recém-nascido. É Elizabeth quem se compadece por ele, se aproxima, tira suas luvas, o toca. Elizabeth quem o vê humano. Essa empatia rapidamente se torna acolhida, que se torna amor. Del Toro não resiste: é um romântico. Como em A Forma da Água (2017), ele não resiste em fazer sua mocinha se apaixonar pelo ser insólito. Isso explica a dupla escalação de Mia Goth no filme, porque espelharia a relação edipiana de Victor em relação a mãe e da criatura para Elizabeth, que deveria ser a esposa de seu criador. Mas o deslocamento do afeto dela de Victor para William acaba por destruir a própria proposta do filme, uma vez que a Elizabeth fílmica não ama o criador. O espelho edipiano se quebra.

A própria imagem da personagem é insólita, construída à semelhança dos insetos que a atraem. Del Toro retoma a parceria com a figurinista Kate Hawley, dez anos depois de Colina Escarlate (2015). Além do já citado vestido vermelho da mãe de Victor e dos posteriores andrajos da criatura, ela elabora vestidos com as cores vistosas dos animaizinhos. Em sua primeira aparição, Elizabeth usa um traje azul com adereço nos cabelos composto por plumas que emulam antenas. Depois volta a aparecer com um xale com uma estampa que remete ao desenho das asas de mariposas. Mais para frente, ela é vista com um vestido com uma amarração marcada nas costas, que imita as secções de um corpo invertebrado. As cores passam do verde lima ao roxo com desenhos de casulos. Elizabeth diz que ela é como as borboletas: bela, mas sem escolhas. Esses animais também estão em constante estágio de transformação, mas ela mesma não tem muitas mudanças nessa narrativa. Além desse trabalho de figurino, destaco duas peças de suas vestimentas. A primeira é o crucifixo com contas marcadamente vermelho de Elizabeth, que funciona como ligação visual com a luva de couro também vermelha que Victor usa no laboratório: uma conexão sanguínea entre a fé e a ciência. A segunda é o seu vestido de casamento confeccionado com tiras brancas de tecidos, que a conecta com os trajes da mortalha da criatura e ao mesmo tempo é um indicativo de seu próprio desfecho.
Victor tenta matar a própria criação e ela vaga em busca de sobrevivência. Del Toro imbuiu essa parte do filme com as metáforas mais pobres que ele conseguiu encontrar. Manteve a criatura vegetariana, como concebida por Shelley, incapaz de matar para se alimentar. Mas no livro ela se aproxima da casa de um idoso cego e dois irmãos, um rapaz e uma moça, jovens e belos. Nesse lugar, os observando, aprende os laços familiares, o cuidado, o amor, aprender a ler, se torna culta. É de uma enorme tristeza descobrir a beleza da humanidade e em seguida sua própria condição monstruosa. Tenta se aproximar do idoso na ausência dos jovens, valendo-se da sua cegueira para não lhe julgar a aparência. Mas a chegada deles é sua desgraça: o rapaz a açoita e ela percebe que nunca será aceita, foi concebida como uma aberração, um cadáver ambulante, e a aproximação e criação de laços com outras pessoas é impossível. Se nem os mais belos e gentis humanos conseguem enxergar sua beleza, quem o fará?
O filme compõe cenas ternas da criatura pela primeira vez vivendo no ambiente externo e convivendo com outros animais Mas também cria imagens maniqueístas de humanos malvados desde o princípio: são caçadores, em oposição à criatura vegetariana. Eles também criam ovelhas, que por sua vez, são caçadas por lobos, numa lógica de cadeia alimentar. Aqui a criatura chega, até mesmo, a matar os lobos por raiva, coisa que jamais faria no livro, onde ela nunca toca em nenhum animal.
Uma filosofia barata, simplista e determinista é acionada para explicar que os caçadores não odeiam os lobos, nem os lobos odeiam as ovelhas: eles apenas são o que são e precisam agir assim porque é da sua natureza. Isso seria uma espécie de justificativa para as ações monstruosas da criatura. Curioso, porque no filme ela não mata os personagens em torno de Victor para afetá-lo como faz no livro, não precisando de tal justificativa. Além disso, a ideia central do livro é a oposta dessa: a criatura não é um monstro por natureza: ela foi tratada como tal e só reagiu, não sem remorso e muito sofrimento no processo. As coisas não são como são: elas se tornam ou se adaptam. O filme justifica uma natureza inerentemente conflituosa das relações, enquanto Shelley advogava a bondade inerente do nascimento e o julgamento posterior da sociedade. O filme simplesmente diz o oposto do livro.

Desse modo, é interessante que Del Toro, talvez em busca de amplificar a empatia do público contemporâneo, alterou as mortes que acontecem na obra original. Porque lá, de fato, a criatura mata humanos. Ela jamais mata animais não humanos, porque não vê nenhum sentido nisso. Apenas pessoas próximas a Victor, em busca de vingança e como forma de exigir o que deseja. Para a criatura, Victor desgraçou a sua vida pois ao tê-la criado, condenou-a ao eterno ostracismo e à solidão. A única solução seria ele construir uma companheira para ele, algo que ele se recusa a fazer. No filme as mortes que seriam provocadas por ela são, direta ou indiretamente, causadas por Victor, o que a inocenta ainda mais de seus atos. Porque seria pedir demais um pouco de ambiguidade moral. E Del Toro não se furta de colocar um personagem falando a Victor, caso a pessoa espectadora não tenha entendido direito a história: “você é o monstro”. Agora sim ficou claro! Se ninguém falasse, vai que o público não fosse entender!
Fugindo dessa vingança, Victor vai até os confins do Polo Norte (onde o filme começa e de onde a história é contada em flashback). Dois terços do filme são narrados pelo seu ponto de vista, que não é lá dos mais interessantes. Mesmo o livro ganha mais fôlego quando a criatura chega para relatar a sua versão dos acontecimentos que, convenhamos, é muito mais intensa e triste e é onde as complexidades se revelam.
Considerando outras narrativas sobre humanos artificiais, essa muito brevemente aborda um tema que geralmente é central a elas: a da alma ou seus equivalentes. Aqui a autonomia da criatura se reivindica para além dessa noção, Victor a denominando “algo” e ela se categoriza como “alguém” e, logo, sujeito de direito. Mas, afinal, o embate fica apenas na superfície, pois Del Toro reduz as questões a nível pessoal.
Victor pede desculpas à sua criatura e diz que herdou o nome de seu pai, chamando-a de “meu filho”. Com isso parece deixar implícito que o erro bicentenário: ela também pode carregar o nome do pai, Frankenstein. Mas por mais que as cenas encham os olhos, os figurinos sejam lindos, as atuações sejam intensas a narrativa seja envolvente, perde-se algo no peso dramático dessa adaptação, na forma como Del Toro lidou com os elementos propostos por Mary Shelley. Nesse sentido chega mesmo a lembrar a adaptação de Jane Eyre de 1943, dirigida por Robert Stevenson, com suas imagens linda e evocativamente góticas, atuações intensas, mas um texto que em nada faz jus à obra de Charlotte Brönte, alterando consideravelmente o temperamento da personagem-título.
Ao transformar a história central de Frankenstein em um romance entre Elizabeth dividida entre Victor e a criatura, o diretor reduziu todas as questões morais a um simples “quem vai ficar com a garota”. Isso quando muda o próprio discurso do livro, invertendo sua lógica. Del Toro é um romântico. Seu filme é bem intencionado, mas como adaptação cinematográfica da obra de Mary Shelley, fica em dívida com a autora. Por mais bonitas que sejam as lágrimas vertidas, não há reconciliação na tortura arrogante a que Frankenstein submete sua criatura, nem na vingança com que ela o busca.
REFERÊNCIAS
NOTTE, Riccardo. You, Robot: Antropologia della vita artificiale. Firenze: Vallecchi, 2005.
SHELLEY, Mary. Frankenstein: ou o Prometeu moderno. São Paulo: Clássicos Zahar, 2017.
WITTMANN, Isabel. Feminilidades maquínicas: gênero, sexualidade e corpo de mulheres artificiais no cinema fantástico. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2023.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha, Nayara Lopes.


Um comentário
Pat
como assim o fofíssimo del torinho errou? bom vou ver pelos vestidos de qq forma e acho que vou ler o livro denovo 🙂