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42ª Mostra de São Paulo- Cafarnaum

Esta crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 18 e 31 de outubro na cidade. 

E tu, Cafarnaum, que te ergues até ao céu, serás abatida até ao inferno; porque, se em Sodoma tivessem sido feitos os prodígios que em ti se operaram, teria ela permanecido até hoje. (Mateus 11:23)

Depois dos belos Caramelo (Sukkar banat, 2007) E Agora Onde Vamos? (Et maintenant on va où?, 2011) era natural a ansiedade que um novo filme de Nadine Labaki causaria. Suas obras anteriores eram centradas em vivências diversas de mulheres libanesas, mostrando que elas se saem melhores quando unidas. Cafarnaum (Capharnaüm), por sua vez, chega validado pelo Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Novamente usando seu país natal como cenário para a trama, dessa vez seu foco se volta para uma criança. Zain (Zain Al Rafeea) tem doze anos e está processando os próprios pais por terem colocado ele no mundo.

O filme quase todo se passa em um flashback  que apresenta os acontecimentos que levaram o menino a essa ação extrema. Nascido em um lar mergulhado na pobreza, ele mora com os pais e uma escadinha de irmãos em um minúsculo apartamento em condições precárias, cedido pelo dono de um mercadinho. Aquela vizinhança desolada poderia ser em qualquer lugar do mundo em que a desigualdade social é assim avassaladora. Álcool, sexo sem privacidade, cigarro, lixo, falta de comida, problemas na estrutura da moradia e outros elementos são usados para frisar a precariedade da situação da família e das redondezas.

Zain não pode estudar, porque tem que trabalhar no mercado e como vendedor na rua, além de cuidar dos irmãos mais novos. Depois que se descobre que Sahar (Haita ‘Cedra’ Izzam), a irmã de quem é mais próximo, menstruou, ela é dada em casamento, para desespero do menino. Quando ele a vê arrumada na sala pronta para encontrar com seu noivo, ele a ofende de forma misógina, como que numa reação desesperada à sua perda. Sahar tem onze anos.

Fugindo de casa para as ruas, Zain é acolhido por Rahil (Yordanos Shiferaw), uma imigrante etíope que tem um filho de um ano, Yonas (Boluwatife Treasure Bankole). Embora a casa na favela onde moram tenha condições melhores que o próprio apartamento de sua família, Labaki não se furta de explorar as injustiças e dores da situação das pessoas retratadas, abordando a fome, a prostituição, a ilegalidade, o medo, a crise dos refugiados (personalizada em uma menina de origem Síria que quer ir embora dali), os sonhos e a dificuldade de conseguir dinheiro. A diretora empilha desgraças na criação de uma trama feita para arrancar lágrimas.

Quando Rahil é presa, Zain se vê só com um bebê para cuidar, perambulando pelas ruas em busca de alguma ajuda. As crianças no parque de diversões deveriam servir para mostrar que essa não é uma história única e há outras realidades naquele local, mas a força da exploração visual da miséria apaga qualquer senso de tridimensionalidade que poderia ser obtido com isso.

A Cafarnaum do título é uma cidade que, na mitologia cristã, é amaldiçoada por Jesus com a perspectiva de inferno pela falta de crença de seus moradores em seus milagres. Misturando favela movie com exploitaion, Labaki constrói uma terra onde seus personagens já vivem o inferno no seu cotidiano. E aí chega-se ao processo: Zain preferia não ter nascido do que viver como vive. Ele, quer, mesmo, proibir que os pais tenham mais filhos além dos que já nasceram. O discurso higienista de culpabilizar os seus genitores pela própria pobreza é colocado na boca da criança sem dó. A sociedade que permite que pessoas vivam nessas condições jamais é questionada. Até a exploração da mão de obra de pessoas em situação de vulnerabilidade, embora apresentada, não é questionada. É como se a pobreza fosse um fato tomado por si e em si mesmo. Para piorar o discurso corrente no filme e acentuar o desconforto que ele causa, Nadine Labaki, que também é atriz e atuou em seus demais filmes, aqui aparece como a advogada que deve salvar o menino.

É certo que Labaki é uma ótima diretora e isso fica patente tanto na já citada estetização da miséria, trabalhada com uma bela fotografia, quanto na direção de atores capaz de arrancar a atuações pungentes de seus atores mirins. Infelizmente ela parece ter mirado em Os Incompreendidos, mas acertou em Quem Quer Ser um Milionário?. A força de seus filmes anteriores se perdeu na tragédia e Cafarnaum, por mais que emocione, também repele pela forma como amarra seus discursos.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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