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Duas catadoras

Texto publicado originalmente na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas.


Esses dias eu li A Teoria da Bolsa da Ficção, um ensaio da Ursula Le Guin que saiu no Brasil pela N-1 Edições, traduzido por Luciana Chieregati. Com enxutas 8 páginas, publicado originalmente em 1986 (depois de algumas das principais obras da autora, diga-se de passagem), é impressionante quantas ideias interessantes ele abarca. Ursula (ou Ursulinha, como chamamos ela na intimidade do Grupo de Leitura Feito por Elas), para quem não conhece, é uma escritora de ficção científica que começou a publicar no final da década de 1950, com o primeiro romance saindo em 1966. Elas permaneceu ativa até seu falecimento em 2018, aos 88 anos. Filha de um antropólogo, costumava escrever sobre o encontro entre diferentes povos (fictícios) sob o ponto de vista de um visitante externo que relata particularidades e alteridade, tal qual uma etnografia. Suas obras abordam temas como gênero (e sua performatividade), sistemas políticos e ecologia. Nesse ensaio, em específico, a autora debate a noção de Herói, tão comum na literatura.

(Imagem: Eileen Gunn/Divulgação)

Essa estória não só tem Ação, como tem um Herói. Heróis são poderosos. Antes que você se dê conta, os homens e mulheres no campo de aveia selvagem e seus filhos e as habilidade dos construtores e os pensamentos dos pensadores e as canções dos cantores fazem todos parte daquela história, foram todos colocados a serviço do conto do Herói. Mas esta não é a histórias deles. É a dele. (LE GUIN, 2021, p.18).

E dado que as pessoas escrevem com centralidade no Herói (e em seu heroísmo), que tipo de narrativas nos costumamos ter na literatura (e, acrescento, no cinema?). Sem dúvida é uma majoritariamente masculina, muitas vezes bélica, baseada em grandes feitos individuais. Isso desde o começo da humanidade e de suas representações. E aí ela cita 2001: Uma Odisseia no Espaço:

Onde está aquela coisa maravilhosa, grande, longa, dura, um osso, creio eu, com o que Homem Macaco do filme bateu em alguém pela primeira vez e depois, grunhindo em êxtase por ter cometido o primeiro homicídio, lançou-o para o céu, onde, rodopiando, transformou-se numa nave espacial penetrando o cosmos para fertilizá-lo e produzir, ao final do filme, um feto adorável, um menino, é claro, à deriva na Via Láctea, na ausência (estranhamente) de um ventre, de qualquer Matriz? Eu não sei. E nem me importo. Eu não estou contando essa estória. Nós já a ouvimos sobre todos os paus e lanças e espadas, sobre as coisas para esmagar e espetar e bater, as longas coisas duras, mas não ouvimos nada sobre a coisa em se pões coisas dentro, sobre o recipiente para a coisa recebida. Essa é uma estória nova. Isso é novidade (LE GUIN, 2021, p.19).

Obviamente apontando para o falocentrismo (sem jamais usar o termo) de narrativas heroicas, permeadas por suas armas longas, duras e perfurantes, Le Guin (ainda que numa lógica cisnormativa) questiona o lugar do Herói nas histórias e estórias. Que tipo de narrativas teríamos se ao invés de considerarmos que o primeiro artefato tecnológico humano foi uma arma fálica, tivéssemos uma bolsa, como o título do ensaio indica? Ou ainda “uma folha uma cabaça uma concha uma rede uma mochila uma sacola uma cesta uma garrafa um pote uma caixa um frasco. Um contentor. Um recipiente” (LE GUIN, 2021, p.19). Algo que pode segurar o que é colhido, carregar o que precisa ser transportado, armazenar o que deve ser guardado ou ainda abarcar algo para ser compartilhado. Embora ela não estabeleça nesses termos, está contrapondo o falocentrismo a uma centralidade uterina (seria histerocentrismo um neologismo?). 

Para quem gosta de edições caprichadas, essa é um deleite: o livro é, ele mesmo, uma bolsa, que carrega postais que complementam o texto.

(Nesse sentido é até interessante pensar que em Barbie (2023)Greta Gerwig não propõe visualmente uma alternativa para a arma-osso. Ela a substitui pela boneca, que representa falicamente a reação violenta contra a feminilidade tradicional – que abarca maternidade compulsória- impostos desde a infância às crianças. É claro que a diretora-autora se vale do imagético memorável para construir seu repertório, mas também o faz sem negar a base ideológica nele contida, trazendo a Barbie-falo como objeto de desejo. Isso pode parecer uma incoerência, mas acaba por fazer sentido dentro de uma proposta narrativa que é, afinal de um feminismo liberal, ou, ainda, um feminismo de mercado).

Se para a tradição literária a narrativa precisa de um Herói e de um conflito, Le Guin defende que a forma natural do romance é a da bolsa, uma vez que “um livro guarda palavras. Palavras guardam coisas. Carregam sentidos” (LE GUIN, 2021, p.20). Ao invés de heróis, ela propõe que romances tenham pessoas. Ao invés de um mito linearmente narrado e marcado pela ideia de conquista, de desbravamento, de triunfo ou de tragédia, ela propõe que haja espaço para uma multiplicidade de coisas e tipos de personagens de acontecimentos. Com um texto inspirado, ela reflete sobre a beleza e a poesia das pequenas coisas que podem ser guardadas na bolsa da ficção, algo que dialoga enormemente com o resultado de sua própria e linda ficção.

Para Ursula Le Guin, então, uma pessoa contadora de histórias é, potencialmente, uma colecionadora, ou ainda, uma coletora de vidas e de pessoas e de acontecimentos e de encontros que se traduzem em narrativas. Sem heróis, sem conflitos. Impossível não pensar em outra contadora de histórias que por coincidência, tem até mesmo uma trajetória em paralelo com a sua. A cineasta Agnès Varda dirigiu seu primeiro filme em 1955 (4 anos antes da primeira publicação de Le Guin) e faleceu em 2019 (1 ano depois) com 90 anos de idade (2 a mais). Contemporâneas, elas compartilharam do feminismo, dos interesses políticos e do gosto por pessoas e suas histórias. Se Le Guin extrapolou o relato etnográfico para a ficção, Varda, com experiência em fotojornalismo, misturou as linguagens documental e ficcional com uma poética muito própria, sempre buscando beleza em coisas que para outros poderia ser banal e abrindo espaço para protagonistas muitas vezes às margens da sociedade.

Varda tem mais em comum com Le Guin do que o cabelinho fofo de cuia <3 (Image: Martin Kraft (photo.martinkraft.com) License: CC BY-SA 4.0 via Wikimedia Commons)

Em seu documentário Os Catadores e Eu (Les Glaneurs et la Glaneuse, 2000), em que aborda o fenômeno da respiga, a coleta daquilo que ficou para trás nas colheitas nos campos ou ainda nas xepas das feiras e mercados urbanos, ela fala que “outra respigadora, a deste documentário, sou eu. Troco com gosto as espigas de trigo pela minha câmera”. Varda se apresenta como uma documentarista que, dessa forma, se dedica a coletar as histórias das pessoas, tal qual Le Guin propõe. E sua câmera na mão se vê convertida em bolsa cumbuca tigela cesto saco que abarca coleta transporta entrega divide narrativas que só seu olhar foi capaz de enxergar e criar para nós.

Duas trajetórias em paralelo de duas mulheres que criaram obras imensamente criativas instigantes. Talvez justamente por compartilharem desse jeito tão bonito de enxergar a vida, as pessoas, as histórias e a arte, que a obra de ambas seja tão única, interessante e poética.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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