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Fréwaka (2024)

Fréwaka vem do título original Fréamhacha, em irlandês, que significa “raízes”. A palavra certamente define a jornada de Shoo (Clare Monnelly), uma cuidadora domiciliar que acaba em uma vila remota em meio a um luto muito mal resolvido pela mãe. A viagem é tanto fuga da protagonista, quanto uma forma de levantar algum dinheiro para sua nova fase de vida. A mulher espera um bebê com sua noiva (Alexandra Bustryzhickaya), ao mesmo tempo em que precisa lidar com todos os objetos deixados pela genitora falecida, para que a casa abra espaço para essa continuidade familiar. O chamado para um novo trabalho vem como alívio, uma maneira de escapar de todos os sentimentos que o local e seus pertences provocam em Shoo.

A diretora irlandesa Aislinn Clarke não poupa recursos do folk horror para ilustrar essa história. Desde o começo, bodes, fantasias tradicionais e máscaras assustam uma ainda jovem Peig (Bríd Ní Neachtain) em sua noite de casamento na área rural em que mais tarde as duas personagens se encontrarão. No presente, Shoo sofre com pesadelos e visões de seus traumas passados, há portanto esse estranhamento em Fréwaka, em que os dois pontos tão distintos e ainda desconectados, a casa da mãe da protagonista e o lar de Peig, são assombrados de maneiras muito similares, sem que se possa compreender o motivo.

São as mulheres, portanto, o foco dessa narrativa. As que operam nos “casamentos, nascimentos e óbitos”, como diz Peig em seus primeiros contatos com a nova – nada bem-vinda – cuidadora. Fréwaka resgata esse caráter ancestral, das tradições culturais da área rural isolada na Europa, tão comum desse subgênero do horror, mas também do papel feminino. Se no passado, uma jovem e grávida Peig era apressada a se casar com o namorado, no momento atual Shoo pode escolher se casar, e com quem, e mais ainda como e quando ter filhos com essa mulher que ama. O senso pode parecer de evolução social, mas existe um peso sobrenatural que paira ao redor destes rituais humanos, focando na figura feminina.

A velha senhora paranoica chama de “eles” o povo que habita o subsolo da casa e vem até a superfície tentando ludibriar Shoo para levar as duas mulheres a seu mundo. “Eles” aparecem quando Peig vai se casar, a sequestrando. Tentam roubar sua filha que ainda nascerá e atraem a jovem cuidadora no momento em todos esses ritos se cruzam em sua vida, a perda da mãe, o matrimônio próximo e a gravidez da noiva. Para se proteger, a idosa coleciona objetos em números e posicionamentos específicos, usa urina, metais puros e sal como armas e lista todas as crenças aprendidas ao longo dos anos. Se “eles” gostam de música, ninguém deve cantar na casa.

A mitologia ao redor dessas assombrações disfarçadas é sempre abordada por como Peig as conhece, fazendo com que sua paranoia seja percebida, aos poucos, como um ensinamento para Shoo. A mulher absorve a forma como a senhora debilitada se relaciona com o que está ao redor dela, ao mesmo tempo que sua chegada impacta radicalmente na proteção e nas regras construídas no local ao longo dos anos. O resultado não é apenas o inevitável choque dessas mulheres com o que mais temem, mas uma jornada de descoberta de suas próprias raízes.

Clarke, também roteirista, opera com o design de produção de Nicola Moroney para que pequenos objetos elaborem uma atmosfera folclórica, e para que as portas sejam barreiras místicas. Cada vez que Shoo atravessa um desses acessos, seja da casa, ou em estabelecimento da cidade, é como se a protagonista encontrasse novas pistas do que a levou até o remoto lugar. As portas também indicam proteção, pois se fechadas, impedindo a passagem, estariam mantendo Peig e Shoo seguras dentro da casa – ou longe do subsolo e da porta mais marcante do longa -, uma alegoria para a condição agorafóbica da idosa, que é muito brevemente mencionada no longa. Fréwaka vai muito mais diretamente na fantasia, do que tenta discutir psicologicamente a situação de suas personagens, jogando a pessoa espectadora em uma imersão de horror, insegurança e símbolos, que leva ao esquecimento rápido da apresentação mais voltada aos diagnósticos e traumas.

Clarke claramente traz suas ideias de como construir um horror de diversas inspirações, quase uma coletânea visual e de conteúdo facilmente percebida por fãs do gênero, porém não se prende a lidar puramente com o psicológico de suas personagens por meio do terror. A diretora prioriza o uso das imagens para provocar sensações e um roteiro de menos respostas óbvias, ainda que a revelação da origem da protagonista soe mais irregular que o restante. Por fim, é exatamente o atravessar de uma porta e a aceitação das raízes que levam Shoo, e a própria obra, a um ponto ainda menos comprometido com a racionalização.

Fréwaka está disponível em streaming no Reserva Imovision.

Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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