Imagem é muito
Texto publicado originalmente na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir, assine aqui.
(pensei em colocar como título desse texto “imagem é tudo”, em referência àquele comercial de refrigerante na década de 1990 que dizia “imagem não é nada”. Mas apesar da brincadeira, me peguei pensando que talvez imagem não seja tudo. Mas que é muito, é).
Esses dias o diretor Denis Villeneuve, cujo novo Duna está nos cinemas, falou o seguinte em uma entrevista:
“Francamente, odeio diálogo. O diálogo é para o teatro e para a televisão. Não me lembro de filmes por causa de uma fala boa, lembro-me de filmes por causa de uma imagem forte. Não estou interessado em diálogo. Imagem e som puros, esse é o poder do cinema, mas é algo que não é óbvio quando se assiste a filmes hoje. Os filmes foram corrompidos pela televisão”.
E aí tocaram as trombetas do apocalipse. As pessoas começaram a lembrar de frases marcantes da história do cinema. Deixe a arma, leve os cannoli. Corra, Forrest, corra. Nós vamos precisar de um barco maior. Houston, temos um problema. Está falando comigo? Eu sou o Rei do mundo! É claro que o cinema está cheio de frases memoráveis. Mas vi muitos comentários criticando ele, como se estivesse falando que está proibido ter falas em filme. E acabei cometendo um tuíte:
“Villeneuve se expressou mal, mas se é Hitchcock, que foi pra Alemanha, acompanhou Lang, Lubitsch e foi assistente de Murnau, falando que os alemães sabiam fazer cinema pq mostravam com imagem e quase não usavam intertítulos, ninguém bate um cílio”.
É claro que eu precisei silenciá-lo, porque o twitter é o pior lugar possível para querer debater algo. Mas realmente, apesar da escolha truncada de palavras do cineasta, me parece que é bastante claro o que ele quer dizer: cinema é uma arte (audio)visual por excelência. Isso quer dizer que pode até ter falas, claro, mas elas não são imprescindíveis. O cinema mudo já era cinema a despeito da ausência (ou ainda da parca presença) delas. Como diria Norma Desmond em Crepúsculo dos Deuses: “Nós não tínhamos diálogos. Nós tínhamos rostos!”. (Ironicamente, outra frase memorável do cinema).
Parece-me que na lógica das redes sociais, em que as coisas precisam ser expressas e defendidas a ferro e fogo, não há espaço para o meio termo ou a ponderação. E assim como ou você discorda veementemente, ou concorda acaloradamente; ou você ama ou odeio um diretor. Ele não pode ser só ok, uma pessoa que às vezes faz uns filmes bacanas e às vezes outros não tão bons. E como a simpatia ou antipatia se estende para as ideias, agora parece que o momento é de desgostar de Villeneuve, o que inclui as coisas que ele fala. Eu, particularmente, gosto muito de alguns filmes dele (A Chegada, Duna) e desgosto de outros (Sicario, Blade Runner 2049). (Os demais não ouso opinar porque faz muitos anos que vi, mas na minha memória Incêndios era bom). Isso não me impede de concordar e discordar de acordo com a posição, vida que segue.
E, nesse caso, não acho que ele esteja equivocado. Sabemos que existem diretores maravilhosos que são artistas do diálogo certeiro (como o próprio Billy Wilder de Crepúsculo dos Deuses). Mas no frigir dos ovos, se formos generalizar como funciona a arte, cinema é imagem. Mesmo esses cineastas precisam saber se comunicar pela linguagem audiovisual. Diálogo pode ser engraçado, dolorido, afiado, emocionante, memorável e ninguém jamais vai criticar um filme por simplesmente ter falas. Mas mesmo Wilder era capaz de entregar cenas assim:
Cada arte precisa ser trabalhada nas suas especificidades. Não significa dizer que filme não pode ou não deve ter diálogos (e, uma vez tendo, que eles sejam proferidos com a eloquência necessária). Mas quais são os enquadramentos? Onde a pessoa que atua está situada? Que roupas veste? Como as cores das se relacionam com as do entorno? Qual é a iluminação? Como são feitos os cortes? Enfim, são nas respostas a essas e outras perguntas que nascem um filme que pode ser interessante.
Se texto bom significasse necessariamente um filme maravilhoso, por que 90% das adaptações das grandes obras da literatura são filmes engessados e esquecíveis? Ou, ainda, por que alguns livros considerados péssimos são adaptados em filmes que são verdadeiras obras-primas? Se só a história contada e o diálogo presente garantisse qualidade, tudo seria mais simples.
Ainda sobre a fala do diretor, tomando a parte em que menciona TV, podemos pensar o que isso quer dizer em termos de linguagem. Hoje as pessoas fazem pouca distinção entre cinema e televisão, porque os estúdios têm plataformas de streaming, as janelas entre a chegada às telonas e às telinhas são pequenas e os modelos de lançamento se embaralham. Além disso, cineastas de renome trabalham em ambos os meios. Mas, até a minha adolescência, dizer que um filme tinha aparência televisiva era uma enorme ofensa. Porque a TV era justamente esse espaço em que, em virtude da tela pequena, se abria mão do visual interessante e se focava nos diálogos. Era o espaço em que o cinema ia pra morrer. “Filme feito para TV” era o título da derrota cinematográfica.
Então vamos de imagem forte. de imagem que comunica, mesmo que as palavras estejam lá.
2 Comentários
Pedro Eduardo
Eu compreendo a fala de Villeneuve como uma provocação e uma constatação de que cinema é essencialmente visual. Porém, cabe tudo no cinema, teatro, dança, música, imagens surreais. Cabe filmes essencialmente visuais como ” Lawrence da Arábia” e “2001” ou “Guerra do fogo” e os filmes extremamente verborrágicos do Tarantino. Mas cinema é essencialmente visual. David Lean era mestre e a imagem da personagem de Sarah Miles em “Filha de Ryan”, contemplando o céu, vale o filme.
Isabel Wittmann
É bem isso mesmo, Edaurdo, pelo menos em meu entendimento