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Laura (1944)

Os muitos planos de Laura que colocam sua pintura ao fundo, sempre enquadrada e estática enquanto outros personagens se movem pela sala, revelam a própria essência do filme de Otto Preminger, a idealização pela imagem das mulheres no cinema. Por grande parte da duração do longa, a pergunta que se levanta ao espectador e a todos os envolvidos na trama é “quem matou Laura?”, já que partimos praticamente do mesmo ponto de vista do detetive (Dana Andrews), não assistimos ao crime, porém também é privado de nós qualquer contato com esse assassinato, o que por sí só já se torna uma distração. É certo que Laura Hunt (Gene Tierney) está morta, o esclarecimento do ocorrido se torna o centro e a narração de Lydecker (Clifton Webb) faz sua voz quase etérea, de um lugar distante e de muita saudade, reforçar essa certeza. É portanto a imagem da mulher a única forma de a conhecermos, seja sua pintura sempre presente na sala onde os personagens se concentram constantemente para discutir fatos e pistas, seja no imaginário tecido pelos comentários acerca da mulher morta. É portanto a questão “quem é Laura?” que se torna ainda mais importante, quem seria essa “dama”, a senhorita nobre, distinta, generosa e tão especial, além da construção da projeção daqueles apaixonados por sua imagem. Assim como Hitchcock fez quatro anos antes em Rebecca, a Mulher Inesquecível, Otto Preminger também brinca por boa parte de seu filme com essa idealização, com o conhecer uma mulher somente pelo que é dito a respeito dela, dos homens fascinados até a própria empregada, também grande admiradora. E é assim que Laura se coloca, pela figura de seu quadro, como um fantasma sempre observando tudo e todos, colocada acima das cabeças dos personagens que já são ou se tornam obcecados por ela, afinal, a paixão do detetive nasce por uma morta, por suas representações e não por conhecer a verdadeira mulher viva.

Mesmo nos flashbacks, o que vemos de Laura é meramente a forma como Lydecker se lembra dela, seu ponto de vista. A quebra ocorre quando Dana Andrews, já bastante aficionado por esse fantasma, dorme e então, como um sonho, essa mulher tão imaginada se concretiza, mas permanece como uma incógnita. Laura está viva, contudo segue sendo uma projeção, a mulher que muitos querem para si e, dessa forma, sua existência é sempre um mistério formado pelas muitas visões e sentimentos que provoca. Compreender quem é a mulher instigante parece mais fascinante do que encontrar seu assassino – o que foi no passado e o que será no futuro – e a verdadeira morta, que leva o tiro em seu lugar, é insignificante. Seu corpo só representa mais uma idealização de Laura, a mulher que ali vivia não importa a nenhum dos personagens, nem ao filme, portanto é irrelevante ao espectador. A protagonista ressuscitada de Gene Tierney sai da pintura e se torna uma pessoa de carne e osso andando e falando pelas cenas, mas é como se continuasse a ser uma imagem idealizada, doce, frágil, quase ingênua em alguns pontos, mesmo quando a narrativa tenta dar uma despistada que a coloca como suspeita, há sempre um controle que a mantém nesse lugar de objeto de admiração, nunca de ação. Laura é como sua pintura, uma imagem a ser observada, e mesmo nessa posição que pouco age para mudar as coisas, domina cada cena e cada atitude, influencia todos e tudo. Da paixão por uma morta à idealização da morte que está por vir, cada personagem é provocado e levado pela obsessão em ter essa figura para si.

A empregada que controla uma cena de crime para manter as aparências que ela mesma possuía de Laura, o senhor apaixonado que acompanha cada passo da investigação quase a gerenciando – o que entenderemos mais na frente -, o detetive que se torna tão atraído por esse ícone que rege a reação de todos os suspeitos ao longo da investigação, e o noivo (Vincent Price) que tenta alterar evidências para a livrar de uma culpa inexistente – em mais um esforço de despistar o espectador. Assim, muito de Laura é sobre controle, desse imaginário feminino representado de forma frágil e doce, um corpo fácil de ser vigiado e contido, seja pela morte ou pelo fantasma pintado na parede, a mulher viva que age e fala ainda está à mercê dos homens que a necessitam ter, tanto quanto sua simples existência, seja como for, é a dominante, a força motriz dos acontecimentos. Descobrir quem matou Laura, e, portanto, quem a matará, se torna um desenrolar natural da trama que chega a sua conclusão finalmente exibindo a cena do crime que nos fora ocultada, o verdadeiro mistério que fisga é compreender o que está além da imagem. A própria pintura que protagoniza tantas cenas fora realizada por um apaixonado, sendo assim mais uma projeção. Laura tem agência na narrativa, importam suas escolhas e decisões, ou é apenas tudo que se constrói dela que tem força? Interessa seu verdadeiro eu ou apenas o que se pode imaginar pelos retratos? E não seria essa a mesma lógica de uma idealização das figuras de mulheres nos filmes hollywoodianos?

As imagens das mulheres têm mais poder do que as próprias representadas, as idealizações criadas, a mística das damas, divas, femmes fatales e mocinhas, são usadas no controle de um imaginário que pouco se importa se estão vivas ou mortas, parece valer mais toda a sedução que elas simbolizam.

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Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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