[48ª Mostra de São Paulo] Manas
Este texto faz parte da cobertura da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 17 e 30 de outubro.
Sutil e responsável em sua abordagem da violência, Mariana Brennand acompanha com cuidado potências femininas que elevam sua narrativa de denúncia
Habituada ao cinema documental, Mariana Brennand encontrou na ficção uma maneira de denunciar violências sem expor suas vítimas e, com essa mesma sensibilidade que é base de sua feitura, traz muita sutileza e responsabilidade para abordar a temática central. Nos anos 70, Iracema – Uma Transa Amazônica colocava uma protagonista muito jovem em Belém, a retratando entre o documentário e a ficção dentro das maiores problemáticas de um Brasil que caminhava em seus grandes erros que levaram a consequências vistas no hoje. Iracema e Tielle (Jamilli Correa) não estão distantes, trocando os caminhoneiros da transamazônica pelos homens da balsa, e uma ausência total de família por um núcleo comandado por um patriarca violentador, mas Manas é completamente diferente na forma do longa de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, recentemente restaurado, mas muito próximo nas violências que quer expor. No filme, premiado no Festival de Veneza com o prêmio de Melhor Direção da Giornate Degli Autori, há algum encantamento da cineasta em detalhar cada pedaço do cotidiano na Ilha do Marajó, como se visse pela primeira vez a precariedade de lavar as próprias calcinhas no rio ou fazer seus cadernos em casa com pedras para alisar as folhas, passando por pequenas tarefas e momentos em uma construção de rotina, uma que é invadida por um abuso que Tielle não conhecia, mas que também se torna parte de seu cotidiano. Assim, a diretora se apega ao olhar dessa menina de 13 anos, com uma câmera que muitas vezes a segue como uma observadora escondida, através de janelas e paredes, filmando sua nuca enquanto caminha e se aproximando de seu rosto para captar as nuances de uma infância roubada.
A sutileza que lida com as imagens para remover um trato direto com a violência, é abandonada na abordagem de seu discurso de denúncia, Brennand tem um propósito muito claro e com a mesma intensidade que emprega carinho às mulheres que estruturam sua obra, é didática e frontal ao sublinhar um texto de alerta. Manas vem dentro de uma possível tendência do cinema brasileiro atual, essa necessidade de traçar filmes a partir de temáticas urgentes que dependem mais do texto do que usam as imagens para tecer algum comentário a partir delas. Nesse sentido, a diretora vai em um caminho seguro e também habitual, o de não olhar diretamente para a violência, evitando qualquer indício de uma fetichização do sofrimento, e usando muita responsabilidade para construir a história de abuso a partir da potência que é sua protagonista. A invasão de seu corpo é sentida por como ela se relaciona com o mundo após o rompimento de sua infância, como seu rosto reage a essa dor e como sua mente de criança forçada a ser mulher responde a isso. A sensibilidade empregada nesse retrato de um silêncio dilacerante é notável, tanto na abordagem do filme quanto na atuação da estreante Jamilli Correa, que dá as mãos a como essa narrativa pretende entrar em seus sentimentos, trazendo força a uma sutileza que respeita seu espaço.
Caminhando ao lado, temos um discurso de denúncia que vem muito escancarado, mastiga para o público uma revolta que é facilmente sentida e compreendida, mas ainda assim lhe é entregue pronta. Tudo que Tielle e sua mãe (Fátima Macedo) passam em atuações fortíssimas, ainda é reforçado por um texto sublinhado, mesmo que o silêncio que mora nas conversas das duas, de sofrimentos impedidos e vivências corrompidas por violências dentro de suas próprias estruturas familiares, grite mais alto do que qualquer frase pronta possa fazer. Dira Paes atua como esse elemento mais expositivo, contrário à sutileza do cotidiano abusivo repleto de coisas não ditas, com uma personagem que usa um texto marcado para acompanhar as ações, essas menos vistas. Assim, mora na dinâmica familiar a abordagem mais rica, que vai construindo gradualmente uma história dolorosa, toda pautada naquilo que não pode ser discutido, em um silenciamento feminino que garante a continuidade de gerações sendo dilaceradas em suas infâncias para servir a homens que se sentem no direito de tomar tudo aquilo que desejam. A força de Tielle, e da jovem atriz que é capaz de ilustrar tantas emoções de forma tão contida, é a força de Manas, que evoca o rompimento de um ciclo e almeja infâncias intocadas, garantidas, e silêncios rompidos.