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Marvin (2017)

Quando o acrobata começa a pensar, ele cai

Dirigido por Anne Fontaine (de Coco Antes de Chanel), Marvin é um um filme de coming of age, de descobrir-se a si mesmo, um Lady Bird queer de interior. O protagonista é Marvin Bijou (Jules Porier), um menino de olhar doce que mora em um vilarejo no interior da França. Sua mãe, Odile (Catherine Salée), o trata com afeto e o defende, mas ao mesmo tempo a dura rotina não permite que preste muita atenção no garoto. Seu pai, Dany (Grégory Gadebois), tem sua própria ética, mas é um homem tosco, rude e mergulhado em preconceitos. O irmão mais velho, Roland (Charles Berling) é violento e o ameaça. Mas o grande problema é a escola, onde os demais meninos tentam humilhá-lo e a violência física se faz presente. Marvin é gay.

O lugar não é violento só com ele. O que vemos são rotinas permeadas pela falta de rumo: as surras da infância que deixam marcas nos adultos, a maternidade compulsória (porque não ter filhos cedo “é ser lésbica ou frígida”), o álcool como alternativa, a falta de um respiro para todos. Tudo alimenta um ciclo de rispidez, mas Marvin é diferente e o que passa guarda a especificidade de sua diferença. Os planos detalhe dão conta da forma como ele observa o seu próprio universo: a sunga na piscina, onde os corpos desnudos dos meninos mais velhos se tocam; a alça azul do sutiã da mãe que escapa em desleixo sob sua blusa. Sensível, ele transita no mundo enxergando e sentindo, mas nem sempre é visto e quando o é, sobram-lhe socos, batons esfregados na cara e um rosto machucado pelo ódio que o rodeia. Em mais uma violência, mesmo que sem o uso de força, seu pai diz que “bicha” é um tipo de doente mental. Sua tentativa de emular uma masculinidade hegemônica é regada a álcool, violência contra uma menina e homofobia internalizada.

É Marvin adulto (Finnegan Oldfield) quem rememora sua própria infância. O passado ecoa no presente. Marvin descobriu o teatro e com ele o acolhimento e a possibilidade de uma saída. Fez uma audição e foi aprovado em um Liceu em Paris, para onde se mudou. Quem é “estranho” sempre vai buscar outro lugar. O pai parado na estação durante a despedida, mas, de dentro do trem, ele não olhou para trás. Para ele era fácil. A ruptura era o caminho. Ele chega, mesmo, a criar versões piores de seus pais para justificar para si mesmo o distanciamento que deseja manter.

A nova vida parisiense é a possibilidade de experienciar sua própria subjetividade. Quando se envolve com um homem mais velho, descobre facilidades que antes eram inatingíveis, mas também se depara com uma questão de classe: é chamado de proletário e acusado de usar a cama para ser burguês. São nessas sutilezas que o filme acerta, ao colocar múltiplas questões de identidade e pertencimento. É como se o lar não fosse em lugar nenhum.

Mas essas reflexões servem para estruturar uma peça dentro do filme. Os momentos rememorados viram monólogo. Entra Isabelle Huppert interpretando Isabelle Hupert, que auxilia o jovem dramaturgo. Marvin muda de nome para Martin Clement. Quem matou Marvin Bijou? No palco, parede e cadeira vermelhas e muita água. Um útero e a vontade de retornar para um lar que não mais existe. É o exílio constante, onde quer que esteja. O artista escova a sobrancelha e se maquia para criar um personagem de si mesmo: a narrativa que criamos para nós numa tentativa vã de dar sentido à vida.

A arte cria o espaço para a expressão. A arte liberta. A arte até mesmo cria o distanciamento necessário para reavaliar pessoas. Na foto de família tirada na infância de Martin, todos estão sorrindo. Mas fotos são posadas. E se ao invés de fotos, aquelas crianças estivessem sendo filmadas? Será que alguém olharia esses filmes e perceberia a tristeza em seus olhares? Se o passado é marcado pela necessidade de fugir para se encontrar, o presente pode ser o local do fazer as pazes, mas esse é um acordo silencioso que nunca vai ser amor.

“É claro que tive momentos de alegria, felicidade até, mas nada disse é inventado”, ele afirma em certo momento. Não é inventado, mesmo que para outras pessoas não parecesse ser do jeito que ele relata. É com a delicadeza da narrativa marcada pela força da dor, que Marvin descortina os caminhos difíceis de crescer sendo diferente.

4,5 de 5 estrelas

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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