Críticas e indicações,  Filmes

Tampopo, cinema e sabores

Bora começar falando de coisa boa? Comida! Eu amo comida! Amo sovar uma massa e ver ela crescer com paciência para virar um pão ou pizza. Amo preparar um ganache e abrir uma massa de torta para montá-la. Amo bater um bolinho rápido, que perfuma a casa, quando chega uma visita. Amo especialmente os aromas: aquele das especiarias espalhando pelo ambiente, especialmente quando aquecidas na frigideira; de legumes assando com ervas; de cebola e alho fritando; do dendê na panela no preparo de uma moqueca. Enfim, sou da cozinha, sou dos aromas e dos sabores. Mas mais que tudo, gosto de comer.

Comida boa é algo imensamente prazeroso e não raro lugares e memórias se associam a ela. Da minha vó, eu lembro da polenta frita e da sopa de legumes feitos com tudo que ela tirar da horta no dia. Da minha oma, eu lembro das bolachinhas de natal, das conservas, dos morangos da horta cuidadosamente picados e polvilhados com açúcar. De Blumenau, minha terra, eu tenho saudade das cucas e dos sagus de frutas. De Manaus, onde morei quase cinco anos, do tacacá, do jambu e do tucumã, além dos sucos de cupuaçu e do de taperebá. Sabores e memórias.

“Você disse especiarias???” (Imagem: divulgação)

Tudo isso para dizer que também tenho uma relação um tanto quando sinestésica com comidas de filmes. Comidas de filmes me deixam com fome, mesmo se eu já tiver comido quando começo a ver um. Esses tempos eu fui ver no cinema Drive My Car (Doraibu Mai Kâ, 2021), do Ryûsuke Hamaguchi. Sem spoiler pra quem não viu (mas o filme está na Mubi, vale a pena!), mas em certo momento um personagem coreano convida o protagonista japonês para um jantar em sua casa. Sobre a mesa, um festival de pequenas tigelas repletas de comidas que não identifiquei para além do arroz e do kimchi, mas tenho certeza que estavam deliciosas. Aguei.

Agora morando em São Paulo, especificamente no bairro Bom Retiro, com forte presença coreana, adoro me embrenhar nos mercadinhos em busca de novos sabores. Os kimchis (fermentados picantes, geralmente de acelga, mas com outros vegetais também) são deliciosos. Já comprei um saco enorme de  gochugaru  (pimenta coreana) e com ela faço chilli oil e gochujang (pasta de pimenta), que fica uma delícia num prato chamado Tteokbokki (que são bastõezinhos de arroz cozidos, servidos com um molho de pimenta e vegetais). Comidas asiáticas em geral, com sua explosão de umami, me deixam ainda com mais vontade de comer. 

A cena do jantar em Drive My Car (Imagem: divulgação)

Pensando em outros filmes com comida ou sobre comida que ficaram na minha memória, não posso deixar de mencionar os caldinhos e comidinhas que aparecem nas animações do estúdio Ghlibli. Tudo tem uma lustrosa aparência de apetitoso.

Não sou só eu: uma rápida googleada por “Ghibli food” mostra dezenas de montagens com as comidas das animações (Imagem: divulgação)

Tem também a maratona de Julie & Julia (2009), da Nora Ephron, em que Julie (Amy Adams) tenta recriar os pratos da famosa cozinha Julia Child (Meryl Streep). Um misto de desafio gastronômico com blogueiragem à moda antiga, o filme tem inegável charme. A própria Ephron, inclusive, em seu livro Meu Pescoço é um Horror (Ed. Rocco, 132 pág, trad. Lia Wyler) conta de forma bem humorada sua relação com livros de receitas que acompanharam sua vida. 
A culinária italiana vem no filme alemão Simplesmente Martha (Bella Martha, 2001), de Sandra Nettelbeck, em que uma chefe de cozinha se rende à simplicidade dos sabores mediterrâneos quando outro cozinheiro começa a trabalhar em seu restaurante. Por outro lado não guardo boas lembranças do remake hollywoodiano com Catherine Zeta-Jones, Sem Reservas (No Reservations, 2007), de Scott Hicks, mas também faz muito tempo que o vi.
Tem também, claro Comer, Rezar, Amar (Eat Pray Love, 2010), de Ryan Murphy, com a Julia Roberts. É um filme absolutamente esquecível, mas que guardei comigo pela parte do “comer” na Itália. E no meu doutorado sanduíche, ano passado, lá fui eu tirar fotos nas locações. 
Sabor da Vida (An, 2015), por outro lado, é memorável. Foi um filme que eu gostei moderadamente quando assisti, porque o fiz em meio a maratona de filmes da Naomi Kawase para o podcast sobre ela. Na época achei ele mais simplório que os demais, todos com temas mais pesados. Hoje, quanto mais eu penso nele, mais eu gosto. O protagonista, que vende dorayakis (que são como pequenas panquequinhas) recheadas com doce de feijão industrializado, aprende com uma senhorinha a arte de fazer o doce caseiro, que leva tempo e cuidado mas que melhora imensamente sua receita. Isso tudo dialoga com os temas da vida e da morte. Já provei o doce de feijão, vendido no bairro nipônico da Liberdade, aqui em São Paulo, mas mesmo aqui ele é industrializado. 
Ainda vou mencionar a lindeza que é Garçonete (Waitress, 2015), de Adrienne Shelly, sobre uma mulher, interpretada pela Keri Russell, que tenta sair de um casamento infeliz, ao mesmo tempo em que explora a arte da confeitaria com suas tortas de sabores variados. 
(Curiosamente agora me dei conta quantos desses filmes são dirigidos por mulheres e não acho que seja coincidência).

As panquequinhas recheadas com doce de feijão (Imagem: divulgação)

E aí eu chego a um filme também japonês que eu vi essa semana: Tampopo (1985), de Jūzō Itami, com o equivocadíssimo subtítulo brasileiro “Os Brutos Também Comem Espaguete” (já que a massa em questão não é essa, mas enfim). O filme está no Belas Artes À La Carte. Ele é protagonizado por uma mulher chamada Tampopo (Nobuko Miyamoto), que tem um restaurante de ramen. Um caminhoneiro forasteiro chega ao lugar, e por acaso a defende de valentões. E aí ele fala com sinceridade: o caldo do prato que ela prepara não é tão bom assim. Juntos (e com mais outros personagens que encontram na jornada), eles vão de restaurante em restaurante aprendendo as artes de construção do sabor. O filme ainda inclui pequenos clipes desconectados da trama principal, mas todos relacionados à comida, ao desejo, ao prazer e até ao erotismo em comer. O filme usa de elementos do faroeste, mas também tem muito humor. Prato atrás de prato, é um festival de iguarias que queria eu poder provar. Desculpe o tracadalho, mas é uma obra deliciosa. Acho que nunca vi um filme em que me visse tão envolvida não só com a história, mas com as comidas apresentadas. Não poderia deixar de recomendar mais.

Vê um ramen pra mim também, por favor! (Imagem: divulgação)
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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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