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La Chimera (2023)

Atravessando mundos e fantasias para questionar o caráter sagrado do passado, Alice Rohrwacher parece trair seu discurso, mas ganha pelo encantamento.

Enquanto sonha durante a travessia de trem, o inglês Arthur (Josh O’Connor) tem sua ligação com o mundo onírico, ou seja ele qual for, rompida bruscamente, enquanto ouve dizer que não saberá como aquela fantasia se encerra. É um prenúncio claro de que Alice Rohrwacher pretende ligar seu sonhador com seu objeto de desejo, utilizando todo o restante do filme como meio, um desenrolar em que dois pontos se conectarão inevitavelmente. Mas o humor de La Chimera faz co que até suas obviedades e clichês se tornem mais agradáveis, é uma abordagem quase inocente que ri das coisas mais simples e torna as interações entre personagens um exercício lúdico. O inglês descontente com onde está vê um encantamento específico justamente na mulher chamada Italia (Carol Duarte), que fala português, esconde segredos e vive de forma despreocupada, com um olhar bastante espirituoso para as coisas. Rohrwacher desenvolve esse romance a partir de uma linguagem própria entre ambos, já que os idiomas são muitos e espalhados pela trama, é preciso criar mais uma forma de se comunicar, um dos muitos pontos de encantamento que se encontram pelo longa. 

Como em seus outros trabalhos, a diretora olha romanticamente para esses cenários bucólicos, assim como trabalha uma inocência quase infantil que explora a Itália entrelaçando passado e futuro, enquanto Arthur cava, descoberta após descoberta, em busca de algo que, certamente, não é a arte escondida. Seu dom, dizem, o faz um mediador entre o mundo dos vivos e dos mortos, levando as pessoas que caminham na terra para as tumbas repletas de artefatos e objetos de arte. A relação dessas pessoas com esses tesouros é de pura exploração, quebram estátuas e outras coisas se for preciso, para que seja mais fácil remover e carregar (inclusive em fugas), vendem sem ao menos consultar o valor, encontram na beleza apenas a possibilidade de lucrar. Enquanto seus personagens trazem à tona o passado pelo subterrâneo do país, todo caráter sagrado do que é encontrado é completamente deixado de lado. Talvez a facilidade com que eles quebram a cabeça de uma estátua possa assustar, porque é justamente esse o choque que se dá ao pensar em um objeto de arte como algo improfanável, uma relíquia que conecta os tempos que passaram com o presente, de valores inestimáveis. Mas é justamente essa questão de transformar o significado do que é sagrado, dos monumentos intocados deixados apenas ao olhar (ou nem ao menos a ele), que rege os melhores momentos de La Chimera e torna a progressão de seu protagonista quase uma traição a seu discurso.

De Italia até outras pessoas que recriminam as atitudes do grupo, enquanto eles mesmos seguem despreocupados com seus trabalhos de escavação e lucro, até o reaproveitamento de um espaço antigo e abandonado, pela personagem encantadoramente singular de Carol Duarte, Alice Rohrwacher parece questionar através de gerações o sentido sagrado do que pertence ao passado, com um grande aceno ao seguir em frente e fazer o melhor uso possível no futuro, mas Arthur tem uma evolução bastante comum de consciência que o coloca justamente como protetor dessa arte superior, que não foi feita para os olhos dos homens e deve permanecer mística, oculta. A própria escolha de dar um rosto, personalidade e discurso a uma espécie de vilã do mundo das artes, que domina esse comércio contrabandeado, já é por si só uma armadilha a tudo que vinha sendo construído. Ao grupo de escavadores pouco importa para onde vão seus objetos, e o mistério que coloca o dinheiro em um elevador vazio, apenas com um intermediário de negociações, se alinha muito mais a essa despreocupação simpática que dessacraliza os artefatos. Ao criar o ambiente de colecionadores, pessoas riquíssimas e caricaturas vilanescas, Rohrwacher até faz uma ótima associação animalesca no conflito de classes, mas escolhe se aliar a uma moral que até então, não parecia nem um pouco próxima de seu objetivo. 

Quando o protagonista trai seu grupo, é como se houvesse uma redenção de suas atitudes, e o seguir em frente de Arthur só serve para o ligar novamente ao que perdeu lá trás. É fazer as pazes com a Italia, seja a personagem ou o país, que o faz merecedor de encontrar novamente Beniamina. Esse romance lúdico, em que a fantasia se mistura à realidade e passado e presente se cruzam o tempo todo pelos questionamentos, enquanto mundos são atravessados pela câmera sempre ativa de Rohrwacher, pronta para virar de ponta cabeça a cada transição e transmitir as quimeras de Arthur para o espectador, tem um encantamento especial quando utiliza tudo isso de forma criativa para contestar e discutir – seja sobre a arte, sobre visões, formas de viver e enxergar o mundo -, mas é o caminho mais simples, de seu humor inocente de soluções mais seguras, que se encontra no desfecho. Ainda assim, é impossível dizer que não há magia em La Chimera, mesmo que seu discurso traia a si mesmo, ou fique confuso e escolha um lugar mais confortável, o olhar de Alice Rohrwacher e cada um de seus personagens é puro encantamento, com um senso de humor que pouco se vê hoje em dia. 

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Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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