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[47ª Mostra de São Paulo] Anatomia de uma Queda

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


A sequência de abertura dá pistas acerca o tom que acompanha o filme. Sandra Voyter, interpretada por Sandra Hüller, está conversando com uma estudante. Escritora alemã de sucesso, ela mora um isolado chalé em uma região montanhosa da França. A garota quer entrevistá-la, mas ela se mostra mais interessada em conhecer a interlocutora, enquanto serve vinho e ri, se divertindo com a interação. Os rostos são enquadrados em close, sem espaço para o entorno: só o que há são ambas absortas uma pela outra, em plano e contraplano. A jovem pergunta sobre a relação entre a experiência pessoal e os livros da autora. Fora de quadro, uma música insuportavelmente alta expressa a presença invisível e hostil do marido da autora, Samuel (Samuel Maleski), e acaba por impossibilitar a realização da entrevista. O filho do casal, Daniel (Milo Machado-Graner) sai para passear com o cachorro e na volta, cerca de uma hora depois, encontra o corpo do pai morto sobre uma poça de sangue, caído na neve diante da casa. E aí começa o mistério.

Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une Chute, 2023), dirigido por Justine Triet e escrito por ela em parceria com Arthur Hararai, busca dissecar, como o título indica, o que pode ter acontecido imediatamente antes da parábola que projetou o corpo de Samuel do alto da casa até o chão. O isolamento da moradia não permite a elaboração de muitas teorias. A hipótese de um estranho vir e em um curto período de tempo matar Samuel é despropositada. Vincent (Swann Arlaud), advogado de Sandra, também afirma que ninguém vai acreditar na hipótese de um acidente. Sobram duas opções: ou Samuel se suicidou, jogando-se do sótão da casa, ou Sandra o matou, empurrando-o de lá. Sandra é indiciada e vai a julgamento como única suspeita pela morte do marido.

O advogado faz uma afirmação que guia a narrativa: o julgamento não é sobre a verdade. Ou seja, não importa o que aconteceu ou deixou de acontecer, o escrutínio é sobre o caráter de Sandra. E desde o começo ela é apresentada como uma mulher fria, sempre sob controle, mesmo nesse momento de emoções intensas (até o momento derradeiro de vulnerabilidade em que desaba em lágrimas). Magnética, ela atrai as pessoas ao seu redor. Sandra Hüller brilha dando vida a seu comportamento contido e atraente que por vezes deixa escapar uma mão se contorcendo nervosamente, uma respiração pesada ou um lábio tremendo quando enquadrado em um plano detalhe.

O embate entre discursos é expresso nas falas dos advogados de acusação e de defesa, que marcam o drama de tribunal. As provas pouca diferença fazem, já que laudos são apresentados acompanhados de análises meramente especulativas, baseadas nas percepções pessoais dos profissionais que tentam encaixá-las em teses pré-fabricadas. O filme surpreende, inclusive, por seu humor inesperado.

Triet constrói a ambiguidade dos eventos com uma linguagem elegante. Somos convidados a nos distanciarmos ao mesmo tempo que permanecemos com uma sensação de tensão. Em certo momento é revelado que há uma narração em áudio de uma briga do casal no dia anterior à morte. Ouvimos apenas o som, registrado pelo marido sem conhecimento de Sandra. Mas a montagem joga a pessoa espectadora para dentro do ocorrido, fornecendo imagens para aquele som, testemunhadas como um flashback. Quando o conflito escalona, a imagem, que preenche lacunas é suprimida e o filme volta para o registro do real imagético, que se encerra com um zoom vistoso. O que se ouve é vidro quebrando, socos sendo desferidos, gemidos abafado e não é mais possível saber o que aconteceu.

Nesse sentido, a dúvida que paira é sobre como o júri vai receber essas informações. De um lado, Sandra, é definida pelo falecido companheiro (presente mesmo em morte) com uma pessoa violenta, de comportamento emasculatório e dominador. De outro, Samuel é descrito como um homem ressentido com o sucesso da esposa e que se culpa pelo acidente que deixou o filho deles cego anos antes. O fato de ela ser bissexual, de ser mais bem sucedida, de passar menos tempo com o menino, de ter relacionamentos com outras pessoas: tudo isso é colocado na balança que mede as impressões sobre a personagem. Sexualidade, carreira e parentalidade são analisadas sob lentes do senso comum, com um machismo casual que muitas vezes se vale de pesos diferentes para ações similares, enquanto o público do julgamento (assim como o do filme) se comporta (e se deleita) como se o drama fosse um espetáculo. Afinal, como é dito em certo momento, uma escritora que mata marido é mais interessante que professor que se mata.

O pequeno Daniel diz que, se não é possível saber como a morte transcorreu, então só se pode refletir sobre o porquê. Nem sequer seu depoimento, central para o veredito, é possível de definir como real ou inventado. A câmera gira ao seu redor para justamente realçar a sua confusão com as vozes em disputa o inquirindo. É patente seu desconforto e angústia com tudo que tem que viver, especialmente quando levado em conta o peso de suas escolhas.

A diretora encena imagens diferentes para as diversas soluções criadas, brincando com a possibilidade de fabular realidades. Além de Sandra, o que está sendo julgado é seu casamento. E como todo relacionamento, em qualquer esfera, ele está sujeito a dias melhores e dias piores, a frustrações, resignações, mas também alentos da convivência, que proporcionam diferentes perspectivas em diferentes relatos.

Trata-se de uma narrativa intensa e exasperadora. Justine Triet domina a linguagem e nunca entrega o que realmente aconteceu. Cabe a cada pessoa espectadora escolher sua verdade, de acordo com seu julgamento a respeito dos personagens e a forma como avalia suas ações e suas respostas. O que está em jogo é uma negociação sobre percepções mediadas por imagens e sons ambíguos. Anatomia de um Crime talvez seja um enigma sem solução, mas isso não importa, porque seu triunfo está na complexa incerteza orquestrada com precisão.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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